Samuel Johnson, pensador britânico do século XVIII, dizia que os
personagens das peças de Shakespeare resumiam a “progênie da
humanidade”, sem faltar “nenhum tipo humano relevante, ou sentimento”. O
poeta Geraldinho Carneiro, meu colega da Academia Brasileira de Letras,
convidado pelo Sesc a traduzir e adaptar a peça de Shakespeare “Otelo, o
Mouro de Veneza”, teve seu texto de apresentação do espetáculo
censurada.Ele escreveu que, ao iniciar o trabalho, descobriu “que Iago adoraria o
mundo de hoje, onde suas fake news fariam sucesso nas redes sociais.
Afinal, nunca houve personagem mais competente em matéria de armações e
calúnias”.
Trazendo a trama para nossos dias, ele escreveu: “Imagine um oficial de
baixa patente que é preterido na carreira, e, movido pelo ressentimento,
pretende destruir a república, representada pelo general Otelo e uma
mocinha da classe dominante. A alegoria é tão clara que não me atrevo a
decifrá-la. Fica a seu critério, caro espectador”. O texto cita o professor americano Harold Goddard, que disse que Iago
"está sempre em guerra, é um piromaníaco moral, que ateia fogo à
realidade.". Mas se abstém de fazer analogias, de todo modo óbvias.
Como já escrevi aqui na coluna, também o economista Gustavo Franco,
estudioso da obra de Shakespeare, diz que “os enredos políticos do nosso
noticiário não passam de variações empobrecidas sobre um vernáculo
catalogado há cerca de 400 anos”. Ele e o advogado José Roberto Castro Neves, outro especialista na obra
do bardo, fizeram um trabalho interessante, comparando seus personagens a
figuras da cena política. Sobre comparação implícita de Geraldinho
Carneiro de Iago a Bolsonaro, José Roberto Castro Neves diz: “O texto é
ótimo, mas o Iago era muito mais sofisticado”.
Também a ex-ministra Marina Silva escreveu um artigo comparando Lula ao
Rei Lear, pondo-se no lugar de Cordélia, a terceira filha, a não
bajuladora, e, por isso mesmo, banida em benefício das duas outras, bem
mais ambiciosas, Goneril e Regan. Quando Lear rejeita Cordélia, e decreta seu banimento — ou a demite do
Ministério do Meio Ambiente —, segundo Marina, “não por acaso desmorona
seu mundo. O que antes era tão bem definido passa a ser ambivalente. Ele
só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é”. Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo:
“Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”. Lear é um
belo retrato da decadência de um rei que se ilude com a sensação de que
anda sobre as águas, comenta Gustavo Franco.
Falstaff, personagem de várias peças de Shakespeare, foi descrito como
“simpático cachaceiro, oportunista pândego e covarde espirituoso”. Seria
o tipo mais macunaímico de toda a galeria shakespeariana. “Nenhum personagem foi mais carismático, cometeu gafes e pronunciou
tantos ditos espirituosos próprios de um humor de taverna, que se tornou
sua marca”. Falstaff tornou-se um personagem gigantesco, destaca
Gustavo Franco, contrariamente a todos os prognósticos. “Sempre
retratado como gordo e barbudo, de um humor bonachão e etílico, não é
preciso especular um segundo sobre onde Falstaff reencarnou no Brasil
contemporâneo”, ironiza.
Falstaff,destacam Franco e Castro Neves, é o verdadeiro herói de
“Henrique IV” aos olhos do público, pois é quem mais se parece com ele,
e, se as coisas fossem se decidir por eleições gerais — um homem (ou
mulher), um voto — Falstaff ganharia todas”. Laertes “se torna uma espécie de Ciro Gomes, movido unicamente pelo ódio
imerecido a Hamlet”. Ciro tem muito também de Coriolano, o brilhante
general que se voltou contra Roma, depois de preterido. Coriolano também
veste o perfil de Bolsonaro: tinha enorme ressentimento da elite
política, que o preteriu, a despeito de seu heroísmo. Era o outsider
agressivo.
Angelo, um puritano hipócrita em “Medida por medida”, também lembra
Bolsonaro. Petruchio em “A megera domada”, tentando controlar Catarina,
“brusca, irritada e voluntariosa” e, finalmente, domando-a com
brutalidade, refere-se ao machismo atribuído a Bolsonaro. Se o gênero humano está representado nas peças de Shakespeare, não
poderia ser diferente com a nossa história política, sobretudo a
recente, marcada tanto pela tragédia quanto pela comédia.
Merval Pereira, jornalista - Coluna em O Globo