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domingo, 6 de outubro de 2019

Uma chanchada shakespeariana - Merval Pereira

O Globo
Samuel Johnson, pensador britânico do século XVIII, dizia que os personagens das peças de Shakespeare resumiam a “progênie da humanidade”, sem faltar “nenhum tipo humano relevante, ou sentimento”. O poeta Geraldinho Carneiro, meu colega da Academia Brasileira de Letras, convidado pelo Sesc a traduzir e adaptar a peça de Shakespeare “Otelo, o Mouro de Veneza”, teve seu texto de apresentação do espetáculo censurada.Ele escreveu que, ao iniciar o trabalho, descobriu “que Iago adoraria o mundo de hoje, onde suas fake news fariam sucesso nas redes sociais. Afinal, nunca houve personagem mais competente em matéria de armações e calúnias”.

Trazendo a trama para nossos dias, ele escreveu: “Imagine um oficial de baixa patente que é preterido na carreira, e, movido pelo ressentimento, pretende destruir a república, representada pelo general Otelo e uma mocinha da classe dominante. A alegoria é tão clara que não me atrevo a decifrá-la. Fica a seu critério, caro espectador”. O texto cita o professor americano Harold Goddard, que disse que Iago "está sempre em guerra, é um piromaníaco moral, que ateia fogo à realidade.". Mas se abstém de fazer analogias, de todo modo óbvias.

Como já escrevi aqui na coluna, também o economista Gustavo Franco, estudioso da obra de Shakespeare, diz que “os enredos políticos do nosso noticiário não passam de variações empobrecidas sobre um vernáculo catalogado há cerca de 400 anos”. Ele e o advogado José Roberto Castro Neves, outro especialista na obra do bardo, fizeram um trabalho interessante, comparando seus personagens a figuras da cena política. Sobre comparação implícita de Geraldinho Carneiro de Iago a Bolsonaro, José Roberto Castro Neves diz: “O texto é ótimo, mas o Iago era muito mais sofisticado”.

Também a ex-ministra Marina Silva escreveu um artigo comparando Lula ao Rei Lear, pondo-se no lugar de Cordélia, a terceira filha, a não bajuladora, e, por isso mesmo, banida em benefício das duas outras, bem mais ambiciosas, Goneril e Regan. Quando Lear rejeita Cordélia, e decreta seu banimento — ou a demite do Ministério do Meio Ambiente —, segundo Marina, “não por acaso desmorona seu mundo. O que antes era tão bem definido passa a ser ambivalente. Ele só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é”. Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo: “Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”. Lear é um belo retrato da decadência de um rei que se ilude com a sensação de que anda sobre as águas, comenta Gustavo Franco.

Falstaff, personagem de várias peças de Shakespeare, foi descrito como “simpático cachaceiro, oportunista pândego e covarde espirituoso”. Seria o tipo mais macunaímico de toda a galeria shakespeariana. “Nenhum personagem foi mais carismático, cometeu gafes e pronunciou tantos ditos espirituosos próprios de um humor de taverna, que se tornou sua marca”. Falstaff tornou-se um personagem gigantesco, destaca Gustavo Franco, contrariamente a todos os prognósticos. “Sempre retratado como gordo e barbudo, de um humor bonachão e etílico, não é preciso especular um segundo sobre onde Falstaff reencarnou no Brasil contemporâneo”, ironiza.

Falstaff,destacam Franco e Castro Neves, é o verdadeiro herói de “Henrique IV” aos olhos do público, pois é quem mais se parece com ele, e, se as coisas fossem se decidir por eleições gerais — um homem (ou mulher), um voto — Falstaff ganharia todas”. Laertes “se torna uma espécie de Ciro Gomes, movido unicamente pelo ódio imerecido a Hamlet”. Ciro tem muito também de Coriolano, o brilhante general que se voltou contra Roma, depois de preterido. Coriolano também veste o perfil de Bolsonaro: tinha enorme ressentimento da elite política, que o preteriu, a despeito de seu heroísmo. Era o outsider agressivo.

Angelo, um puritano hipócrita em “Medida por medida”, também lembra Bolsonaro. Petruchio em “A megera domada”, tentando controlar Catarina, “brusca, irritada e voluntariosa” e, finalmente, domando-a com brutalidade, refere-se ao machismo atribuído a Bolsonaro. Se o gênero humano está representado nas peças de Shakespeare, não poderia ser diferente com a nossa história política, sobretudo a recente, marcada tanto pela tragédia quanto pela comédia. 
 
Merval Pereira, jornalista - Coluna em O Globo

domingo, 15 de julho de 2018

Um país de especialistas

Ninguém tem culpa de ser burro, nem qualquer mérito em ter nascido inteligente ou bonito. Mas a burrice é perigosa

Aos poucos, e à força, os brasileiros vão se especializando. Além de 200 milhões de técnicos de futebol, discutindo táticas, escalações e estratégias, também nos tornamos especialistas em novelas, todos entendem de interpretação, roteiro, tramas, se identificam com personagens e lutam por eles.  Tivemos que nos especializar em economia no duro aprendizado de incontáveis crises. Agora todos entendem de inflação, câmbio, juros, e debatem os números da economia como se fossem futebol ou novela.

De política, todos entendem, têm profundas convicções, soluções para todos os problemas. As causas mais nobres.  Agora, todos entendemos tudo sobre leis e sua aplicação. Nos tornamos juristas amadores e discutimos decisões de tribunais como se fossem futebol, novela ou eleições. Com mestres como Gilmar, Dias Toffoli e Lewandowski, formamos péssimos juristas de araque.

Nelson Rodrigues reclamava que, em tempos passados, os idiotas vocacionais e as bestas quadradas tinham um certo pudor em dar opiniões, sabiam de sua estupidez e conheciam seu lugar, mas, na alvorada da era das comunicações, estavam dando opinião sobre tudo, orgulhosos da própria burrice. Imaginem Nelson na era da internet… rsrs
Um cínico nelson-rodrigueano diria que, no Brasil, os competentes raramente são honestos; e os honestos e incompetentes, com sua burrice e boas intenções, dão mais prejuízo que os ladrões.

Ninguém tem culpa de ser burro, nem qualquer mérito em ter nascido inteligente ou bonito de fábrica. Mas a burrice é perigosa, se convence de soluções fáceis para problemas complexos, se aferra às suas convicções como verdades absolutas, é impermeável a razões e argumentos, e até a números e evidências científicas.  Sim, inteligência não tem nada a ver com ignorância, e Lula é a melhor prova disso, em contraponto às manadas de burros ilustrados no meio acadêmico. Mas o que é pior: a inteligência voltada para o mal, pelo seu maior potencial de danos, ou a burrice bem-intencionada e voluntarista, pelos desastres que provoca?
“São cegos guiados por loucos rumo ao abismo”, diria o Rei Lear, se vivesse no Brasil.


Nelson Motta - O Globo

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

O Supremo e sua armadilha



Artigo: O Supremo e sua armadilha

Senador Aécio Neves foi a presença mais ausente no julgamento


O Supremo Tribunal Federal (STF) dizia que estava julgando os limites entre o Legislativo e o próprio Supremo. Não estava. Estava era julgando o destino do senador Aécio Neves (PSDB-MG) e outros congressistas. Conforme o Supremo em Números, da FGV Direito Rio, cerca de 33 senadores e 152 deputados eleitos em 2014 responderam ou respondem a inquérito no Supremo.

Quem identificou essa armadilha foi o ministro Celso de Mello. Perguntou simplesmente de onde surgiu, por que foi criado o próprio Supremo?  Do nada, nada surge, disse  Shakespeare em Rei Lear. As instituições também não surgem do nada. Têm uma razão de ser. A razão de ser do Supremo foi justamente limitar o poder então absoluto do parlamento. No Império, os legisladores eram legisladores e juízes de si mesmos. Na República, não mais.

O instrumento para limitar o Congresso é o controle de constitucionalidade de atos e leis, feito pelo Supremo Tribunal Federal. Esse controle deve ser feito em abstrato. Para que não seja maculado por interesses menores.  Em nome de julgar a competência do Congresso, só se pensava no futuro dos congressistas de alguma forma envolvidos com casos de corrupção, lavagem de dinheiro e tanto mais. O Supremo fazia um controle abstrato concreto. O que não existe, mas existiu.

O ministro Sepúlveda Pertence uma vez disse que o Supremo não julgava com os pés na lua.  Os pés na terra do Supremo de ontem, encharcados da realidade brasileira, visível pela liberdade de imprensa, pelas mídias sociais, e pela evidência dos fatos, seriam enfrentar essas praticas.

A presença do destino do senador Aécio Neves ficou clara na confusão da formulação do voto da presidente Cármen Lúcia. O senador Aécio Neves foi a presença mais ausente no julgamento feito ontem. O Supremo não pode pautar um controle abstrato de constitucionalidade, quando, na realidade, está julgando casos concretos. Confunde e cria mais instabilidade jurídica.

Por: Joaquim Falcão -  Professor da FGV Direito Rio