Análise Política
Há um certo quê de Velho do Restelo no lamento permanente contra a
polarização política, que a narrativa aponta como acontecendo agora numa
escala inédita. E à lamentação costuma seguir-se uma fúria santa, o
apelo à solução mágica: cada um busca eliminar da polarização o incômodo
“outro”. Mais pedregosa é a missão do autodenominado centro, que se
impôs em algum momento a tarefa de remover da cena não um, mas os dois
polos.
Talvez não haja sintoma mais definitivo da agonia da Nova República,
cujo pilar central, ou um dos, era a premissa de que todos os grupos
políticos teriam o direito de existir e disputar o poder. E,
naturalmente, revezarem-se nele. Mas os fatos das últimas décadas
acabaram revelando (como se precisasse ser revelado) que esse “direito
universal” seria, na prática, não tão universal assim.
Tudo começou com o impeachment de Fernando Color de Mello, em que as
evidências de um “crime de responsabilidade” formal eram ainda mais
escassas do que viriam a ser no caso Dilma Rousseff. Collor não foi
ejetado por eventuais crimes, mas por faltar-lhe base política, já que
era “de fora” do bloco vitorioso em 1985. Bloco que vinha de fracassar
espetacularmente nas eleições presidenciais de 1989, mas mantinha
hegemonia no Congresso e na sociedade civil.[uma avaliação honesta, leva à conclusão de que a Nova República foi o embrião das organizações criminosas que produziram o 'mensalão' e o 'petrolão', sem esquecer de outras menores iniciadas ainda no governo Sarney.]
Quando a passagem do tempo der uma desbastada nas paixões que contaminam
a análise histórica, ver-se-á aquele impeachment na origem da dinâmica
política que acabou levando ao passamento da Nova República. Foi a
semente da ideia, agora amplamente disseminada, de que vale tudo para
eliminar o adversário da cena. O curioso, ainda que previsível, é a
“defesa da Nova República” servir hoje para justificar exatamente o
contrário dela.
A Nova República buscou substituir a autocracia por um regime
democrático-constitucional em que o Legislativo fosse o palco para
alcançar as maiorias e consensos possíveis. Hoje, recebe-se com
naturalidade que esse papel seja transferido ao Judiciário, o único dos
três poderes não eleito diretamente pelo povo. [é a democracia à brasileira.]E se você mexe na
realidade ela também o transforma: o Supremo Tribunal Federal virou um
mini-Congresso.
A Nova República veio para restaurar a imunidade parlamentar e proteger
os mandatos contra as cassações arbitrárias. Hoje, a cultura do
cancelamento contaminou a representação política e cassar mandatos virou
algo aceitável e até rotineiro. O aspecto mais estupefaciente é o
próprio Legislativo receber com passividade a invasão de suas
atribuições. Nós tempos do regime militar, pelo menos ouviam-se bons
discursos de protesto quando mandatos eram cassados.
Os exemplos são muitos. Um evidente está na criminalização da liberdade
de expressão, a pretexto de proteger contra as “ideias erradas”. E por
aí seguimos. A situação que vai se criando é confortável para quem, em
certo momento, está em situação vantajosa na batalha permanente para a
supressão do adversário. Aí ouvem-se, do lado mais fraco, os apelos ao
respeito aos direitos e garantias previstos na Carta. Quando o vento
muda, mudam de lado os argumentos. E com a maior naturalidade.
Vale a pena ler também: Eleição das comparações
Alon Feuerwerker, jornalista e analista político