O
ex-presidente Lula perdeu a batalha mais importante de sua vida.
Tem pela
frente, ainda, um demorado tiroteio nas altas, médias e baixas cortes da
Justiça Penal brasileira. Mas não tem mais esperanças de sobreviver a uma
doença para a qual não existe cura conhecida: a destruição de sua força moral.
Trata-se do conjunto de atributos que realmente separa os homens, e mesmo as
nações, em matéria de sucesso ou fracasso, e ao qual se costuma dar o nome
genérico de caráter. Sabe-se desde sempre o que entra nesse conjunto. Entram aí
o valor da palavra dada, a reputação, o respeito aos outros e a si próprio, a
capacidade de transmitir confiança.
É a força que faz uma pessoa falar e ser
naturalmente acreditada. É a coragem para assumir responsabilidades, enfrentar
momentos adversos, não abandonar os amigos em dificuldade. É o exercício da
honestidade e da integridade comuns. Em suma, é o que na linguagem do dia a dia
se chama de “vergonha na cara” ─ ou honra pessoal. [atributos que faltam ao Lula e aos lulopetistas.] Muito mais que fama, força
ou riqueza, é o que realmente faz a diferença. Fará toda a diferença para Lula.
Sua batalha está perdida porque ele perdeu o bem mais precioso que poderia ter
─ a força moral decisiva para tornar-se alguém que valha a pena como pessoa e
como homem público.
Hoje,
vivendo acuado num prédio de escritórios do bairro paulistano do Ipiranga, com
suas despesas pagas por magnatas, cercado não pela massa dos pobres que diz ter
salvado, mas por negociantes de “marketing”, burocratas do PT, parasitas
variados e uma armada de advogados que pouquíssimos brasileiros poderiam pagar,
Lula está só. Do povo, nem sinal. O homem que tanto menosprezou os adversários
falando de sua popularidade de 100% não pode ir a um campo de futebol ─ nem ao
estádio do Corinthians, em Itaquera, cuja construção impôs para a Copa do Mundo
de 2014, da qual não conseguiu assistir a um único jogo. Não pode ir jantar um
frango com polenta em São Bernardo. Não pode ir a uma loja, comer um pastel de
feira ou andar sem a proteção de um regimento de seguranças. Não pode ir ao
infeliz sítio de Atibaia que tanto frequentou até faz pouco, e no qual
empreiteiros amigos socaram uma fortuna em reformas ─ nem, menos ainda, a esse
amaldiçoado tríplex do Guarujá. Não pode, no fim das contas, sair à rua ─ e,
como se fosse um castigo, não pode gastar livremente no próprio país os milhões
de reais que ganhou fazendo palestras para construtoras de obras públicas e outros
colossos da elite empresarial brasileira.
Que líder de massas é esse? Aos 70
anos de idade, Lula veio acabar metido na situação contrária à que Guimarães
Rosa descreve num conto particularmente genial de sua vasta coleção de contos
geniais, o Burrinho Pedrês. Como se lembram os leitores da história, o modesto
burrinho sabia uma coisa mais importante que todas as outras, para quem, como
ele, tinha sido sorteado com uma vida difícil ─ jamais entrava em lugar algum
de onde não soubesse como sair depois. O ex-presidente entrou com tudo. Agora
precisa sair, mas não sabe onde está a saída.
É certo
que Lula não será ajudado, nessa procura por um caminho capaz de tirá-lo do
buraco, por nenhuma das manobras que vem utilizando há trinta anos para dar a
volta em seus problemas. A causa verdadeira do colapso que vive hoje é o fato
de ter entrado em estado de coma moral ─ e isso não se resolve chamando um
gerente de propaganda para bolar comerciais de TV, da mesma forma que “imagem”,
por mais esperteza que se empregue em sua criação, não substitui caráter.
Também não adianta gastar dinheiro com advogados que passam o tempo armando
chicanas processuais e outros truques destinados a impedir que se julgue o
mérito real dos fatos alegados contra ele; isso pode funcionar como estratégia
de fuga, mas não cria valores em cima dos quais se consiga construir uma
reputação.
Não é possível sair do lugar em que o ex-presidente se enfiou
distribuindo camisetas vermelhas, fretando ônibus e pagando diárias, sempre com
dinheiro público, a milícias que se apresentam como “movimentos sociais”. Dá
errado, cada vez mais, continuar atirando em Fernando Henrique Cardoso ─ isso
para ficar apenas no alvo que se tornou sua ideia fixa ─ na esperança de provar
que “todo mundo é igual”; quanto mais tentam fazer a comparação, mais chocantes
ficam as diferenças de conduta entre os dois. Enfim: tem-se tentado de tudo, e
nada dá certo. Continuará assim, pois nada altera a pane central que existe
nessa história: Lula não é o homem que diz ser. Também não é o que seus
admiradores, de boa-fé ou por interesse, acham que seja.
A
desmontagem da estrutura ética do ex-presidente está sendo feita unicamente
através de fatos, não de alegações; e são fatos que não precisam mais ser
provados, pois todas as provas já foram exibidas e confirmadas. Mais: nenhum
deles, até agora, foi apresentado ao público brasileiro pela oposição, que se
limita a acompanhar sua divulgação na imprensa e fazer o mínimo possível de
comentários. A
derrota, enfim, não veio por causa de nenhuma batalha dessas que fazem tremer a
terra ─ nada de Waterloo, ou de invasão da Normandia no Dia D. Tudo veio acabar
em mesquinharia e pequenez, nas miudezas miseráveis da reforma de um sítio de
segunda linha, nas 200 caixas de mudança da “transportadora Cinco Estrelas”,
nos desvãos de uma arapuca imobiliária que lesou 3 000 famílias com um golpe na
praça.
Não houve a discutir, nessa demolição, uma única questão de princípio,
filosofia política ou consciência ─ ficou tudo exclusivamente numa conversa de
fim de feira sobre quem é o dono do tríplex na cooperativa falida, quem pagou a
cozinha Kitchens, quem mora de graça na casa de quem. Mais que qualquer outra
coisa, ficou uma palavra-guia, a palavra que não pode mais calar na biografia
de Lula: empreiteira, empreiteira, empreiteira. É aí, na hora da verdade, que
ele encontrou de fato sua perdição.
Nada
destruiu tanto a autoridade moral de Lula quanto seu convívio com as
empreiteiras de obras brasileiras, durante e depois de seus dois mandatos.
Nunca antes, em toda a história do Brasil, houve um presidente da República com
tantos e tão íntimos amigos entre os empreiteiros. Alguém é capaz de citar
outro? Em apenas quatro anos, de 2011 a 2014, momento em que a casa começou
enfim a cair, Lula recebeu 27 milhões de reais para fazer palestras
encomendadas pelos gigantes da construção pesada no país. Foi presenteado,
também, com contribuições milionárias para sustentar as despesas do seu
Instituto Lula ─ isso e mais viagens de jatinho, uma antena de celular a 100
metros do sítio que utiliza em Atibaia, e as obras de reforma nesse mesmo e
malfadado sítio, que agora atormentam sua vida.
Os presentes não vieram apenas
das empreiteiras, certo, mas isso não melhora sua situação em nada ─ vieram de
fontes mais sombrias ainda, como um consórcio de estaleiros que vivem de
contratos com a Petrobras, o Banco BTG Pactual, um “centro de estudos” de
Angola. Através da francesa GDF Suez, há traços até da inesquecível Astra Oil,
que vendeu à Petrobras o ferro-velho da refinaria americana de Pasadena, algo
tão parecido com uma negociata em estado puro, mas tão parecido, que até hoje
não foi possível descobrir a diferença. Ganhar dinheiro fazendo palestras para
essa gente está dentro da lei? Está. Está dentro da moral comum? Não está, e é
aí que começa e acaba o problema. Um ex-presidente da República não pode,
simplesmente não pode, aceitar dinheiro de empresas que dependem do Tesouro
para sobreviver. É isso, e ponto final.
Como
seria possível confiar na imparcialidade, na palavra e na integridade de
valores de alguém que anda em tais companhias, ainda mais quando se sabe da
influência que exerce no governo que está aí? Lula recebeu dinheiro das
empreiteiras porque foi presidente do Brasil por oito anos, e não por seus
conhecimentos em matéria de viadutos, ferrovias e usinas hidrelétricas; ninguém
lhe daria um tostão furado se tivesse sido apenas presidente de sindicato. Lula
diz o tempo todo que só chegou ao comando da nação porque os pobres votaram
nele. Mas não vê nenhum problema no ato de transformar em dinheiro vivo, agora,
o apoio que recebeu dos humildes ─ a quem deve tudo, inclusive sua
transformação em milionário. O ex-presidente, de tempos em tempos, diz que tem
o direito de ser rico. Tem, mas não tem. Não pode botar no bolso, sem se
desmoralizar, 27 milhões de reais de empreiteiros ─ nem ser seu amigo íntimo,
prestar-lhes serviços, permitir que lhe paguem despesas, aceitar que sejam
sócios de um dos seus filhos e sabe-se lá ainda o que mais. Um homem público
como ele não pode, nessas coisas, ser igual aos demais cidadãos. Tem de abrir
mão de uma porção de confortos; é o preço a pagar para manter inteira a sua
moral. Se achar injusto, bastará deixar a vida pública; ninguém é obrigado a
ser presidente da República.
Lula
acostumou-se a achar que tem direito a tudo, e não está sujeito a nada.
Imaginou que pudesse ser o mais querido entre as empreiteiras ─ e que isso não
iria lhe trazer problema algum. Achou que seus dois filhos pudessem ganhar
milhões fazendo negócios com empresas que dependem do governo. Não viu nada de
mais em meter-se com uma quadrilha que vendeu apartamentos na planta a
bancários, roubou o dinheiro que recebeu deles e foi à falência sem entregar os
prédios. Com exceção, claro, de um ou outro que foi concluído por uma
empreiteira, mais uma, e reservado aos amigos ─ entre eles o que abriga o
tríplex do Guarujá. O que Lula, que nem bancário é, estava fazendo no meio
dessa gente? As histórias vão adiante e adiante; o que apareceu escrito aqui
está muito longe de ser tudo. Mas é o suficiente. Este é um combate que
claramente chegou ao fim.
Fonte:J. R. Guzzo: Publicado
na versão impressa de VEJA