Por falar
em juízes com certa vocação para a autocracia, está em curso a
investigação determinada pelo ministro Gilmar Mendes sobre aquele
espetáculo dantesco em que o ex-governador Sérgio Cabral (RJ) é
conduzido, em Curitiba, com as mãos algemadas e os pés acorrentados.
Obviamente, tratou-se de um ritual de humilhação, sob as barbas — num
caso, literais — dos juízes Marcelo Bretas e Sérgio Moro. Como ninguém
assume a autoria da óbvia e desnecessária agressão — inclusive a decisão
do Supremo no que concerne ao uso de algemas —, então se pode concluir,
num primeiro momento, que, quando menos, os dois uniram as respectivas
togas na omissão.
Como? Você
não gosta de Sérgio Cabral? Bem, leitor, eu devo não gostar mais e
primeiro. Durante anos, fui voz isolada na grande imprensa na crítica a
seu governo. E olhem que eu nem precisava que apontassem roubalheira
para isso. Repudiava muitas de suas escolhas, como, por exemplo, a
política de segurança pública. Alguns, inclusive na imprensa, que comem
hoje covardemente o seu fígado, ficaram a um passo de se ajoelhar a
beijar os seus pés — como o ministro Luiz Fux fez, note-se, quando
indicado para o Supremo por Dilma, também por influência de Cabral. Não
chegou a beijar os pés do então governador. Fez a genuflexão e deu um
ósculo no sapato de Adriana Ancelmo, então primeira-dama, advogada
influente e pessoa das relações profissionais e privadas de Fux. Mas
volto.
Você não
gosta de Cabral? Nem eu. Ocorre que o que me mobiliza é o cumprimento da
lei, é a civilidade, são as regras de uma civilização democrática. E é
claro que lá estava caracterizado um abuso. Aliás, começou quando
Bretas, numa manifestação ridícula, classificou de ameaça a lembrança
feita por Cabral em depoimento sobre um fato notório e público:
familiares do juiz atuam no ramo de bijuterias. O doutor aproveitou o
episódio para determinar a transferência de Cabral para um presídio
federal, decisão vetada pelo Supremo. Tempos depois, veio a acusação de
que ele tinha no Rio, sendo transferido do presídio de Benfica para o
Complexo Médico Penal, em Pinhais, no Paraná.
E se deu,
então, a cena asquerosa: Cabral foi conduzido para exame no Instituto
Médico Legal com pés atados por correntes e algemado. E, obviamente,
isso era desnecessário. Pois bem: com o apoio da Segunda Turma, Mendes
determinou a abertura de inquérito e indicou o juiz Ali Mazlum, que atua
como auxiliar na Casa, para conduzir a investigação.
Raquel
Dodge, procurara-geral da República, manifestou-se contra a decisão do
ministro. As objeções são improcedentes. A Turma é soberana para
determinar esse tipo de procedimento e já há precedente na Casa, sem
manifestação contrária da PGR. Para ela, o ministro não deveria se
intitular relator do caso. Bem, a investigação se deu por vontade da
Segunda Turma, sob a relatoria de Mendes. Ela objeta ainda que não há
pessoas com foro especial no caso e que, portanto, a investigação não
poderia ficar no Supremo. Raquel não é boba e sabe que aquela cena
lamentável foi montada justamente para afrontar uma decisão do tribunal
sobre algemas. Finalmente, ela afirma que já há investigação determinada
pelo MPF sobre os mesmos fatos. É mesmo? Cadê? Quais diligências foram
postas em prática até agora?
Aquela cena patética tem de ser explicada, e os responsáveis por ela, punidos. E, por
óbvio, é preciso apurar as respectivas condutas de Moro e Bretas num
episódio feito para gerar imagens nas TVs e nas redes sociais, deixando
claro que, então, os protagonistas da Lava Jato estão no comando do país
e fazem o que lhes dá na telha — o que inclui desrespeitar decisão do
STF e humilhar pessoas que estão sob a guarda do Estado.
Essa e outras farras autoritárias têm de ter fim.
O combate à corrupção não pode ser o esconderijo de arremedos de ditadores e tiranos. Com ou sem toga.