No Brasil, a cultura da matança persiste, com apoio da sociedade
Câmeras flagram policiais das duas maiores cidades brasileiras que executaram suspeitos rendidos. A regra nesses casos é a impunidade – e muita gente está de acordo com desmandos desse tipo
Um rapaz recebe um tiro
no peito e cai. Uma
poça de sangue rapidamente se espalha em torno do seu corpo, já sem vida. A
presença de três policiais na cena faz supor que estão atrás do autor do
disparo. Não: a bala que matou o rapaz saiu do fuzil de um deles.
Com a precisão de uma ação ensaiada, o trio de farda pega a pistola do morto e
posiciona-a em sua mão inerte. Um dos policiais aperta duas vezes o gatilho.
A
história, ocorrida na terça-feira em uma favela no Centro do Rio de Janeiro,
estaria destinada a engrossar o silencioso rol de atrocidades esquecidas pela
lei não fosse por um detalhe: uma moradora do Morro da
Providência registrou e narrou toda a cena em um vídeo gravado no celular. No
filme, ela diz que Eduardo Felipe
Santos, de 17 anos, integrante do tráfico local, foi abordado pela polícia
e se rendeu, mas mesmo assim foi executado.
Em São Paulo, no dia 11 de
setembro, cinco policiais foram presos depois de flagrados em um vídeo de
roteiro assustadoramente semelhante: eles cercam,
rendem, revistam e algemam o suspeito de um assalto, para, em seguida,
desalgemá-lo e matá-lo a tiros. Depois, põem uma arma em sua mão e
disparam. Nos dois episódios, PMs tentam
forjar confrontos com os marginais para esconder o que não passou de crime
de execução sumária.
Parte da falta de interesse em investigar execuções de bandidos cometidas por agentes da lei deve-se ao apoio que grande parcela da população confere à prática. Na semana passada, diante da notícia sobre a cena de crime forjada no Rio de Janeiro, constatou-se que seis em cada dez comentários postados por leitores em uma rede social eram de aprovação à conduta dos policiais. "PM que mata vagabundo deveria ser condecorado", dizia um deles. "E daí que a cena foi forjada?", opinava outro. "Tenho certeza de que o cidadão morto não estava ajoelhado rezando." Apenas 28% dos que comentaram a notícia condenaram o crime.
O apoio massivo das pessoas aos desmandos policiais não surpreende especialistas. Diz o psicanalista Contardo Calligaris: "Numa cidade como o Rio de Janeiro, é muito forte a impressão de viver em uma guerra, em que os policiais representam os bons e os bandidos, os maus. Como quase todo mundo já foi vítima da violência ou ouviu relato de pessoa próxima que viveu episódio assim, é fácil identificar-se com a situação de perigo por que o policial passa no combate aos bandidos e mesmo apoiar uma reação brutal".
A cultura da matança está entranhada na polícia brasileira. O Rio de Janeiro é o estado em que mais se mata. Com traficantes munidos de portentoso arsenal bélico, os PMs saem às ruas preparados para ver sangue correr. O confronto já foi até oficialmente incentivado pelo Estado, durante o governo Marcello Alencar, nos anos 90. Havia então a "gratificação faroeste", um bônus incorporado ao salário do policial que capturasse ou matasse bandidos.
Na semana passada, a juíza Daniela Assumpção, da Vara de Execuções Penais do Rio, saiu de uma visita ao Batalhão Especial Prisional - onde há 221 policiais detidos - sem os óculos, um dos sapatos e com a blusa rasgada. Alguns detentos - muitos presos por integrarem milícias - usaram a força para impedi-la de entrar numa das alas do presídio, como represália pela supressão de regalias. [muitos policiais recolhidos ao BEP merecem estar presos; mas, com a regra, ainda que informal, que todo policial é culpado até que prove inocência, a maioria dos lá confinados respondem por crimes que sequer ocorreram – caso dos que estão presos pela suposta possível morte do servente Amarildo – para ficar só em um exemplo.]
Nos Estados Unidos, vigora um protocolo para confrontos com bandidos esmiuçado em catorze passos: primeiro, o aviso é dado em determinado tom de voz, vai subindo, vira ameaça e segue engrossando até resultar em um tiro, o último recurso. Já no Rio, não há protocolo formal. A academia informa que "a força utilizada deve ser proporcional à ameaça". A superação da cultura da matança exige maior rigor e clareza nas regras de conduta dos policiais, maior vigilância sobre as suas ações e um esforço coletivo para reduzir a impunidade dos culpados. Sem isso, a sociedade já terá perdido a guerra contra o crime.
Fonte: Revista VEJA