Ameaça legislativa
Sob a
bandeira do liberalismo, Câmara cria reserva de mercado e reduz direitos de
consumidores. PT e PSDB deixam fluir ameaças aos fundamentos da sociedade
moderna
Um grupo
de deputados, com poder de decisão sobre a pauta de votações, transformou o
plenário da Câmara numa linha de montagem de leis tão insólitas quanto
surpreendentes. Na semana passada, por
exemplo, eles criaram uma reserva de
mercado e limitaram o direito dos consumidores à informação.
Introduziram
uma série de ressalvas nas regras sobre contratos de terceirização de serviços,
erguendo uma muralha no acesso a esse mercado. Na prática, restringiram os
negócios às empresas já estabelecidas — algumas, por coincidência,
destacam-se pela habitual participação no financiamento de campanhas. Nem houve preocupação com sutilezas. Numa
legislação voltada à iniciativa privada estabeleceram, entre outras, a
exigência de que uma empresa só pode ser contratada se apresentar garantia “em valor correspondente a 4% do valor do
contrato”. Especificaram: “Caução em
dinheiro”, “seguro garantia” ou “fiança bancária”. Não se sabe porque 4% e não 80% ou 0,5%. [a garantia já existe nos contratos em vigência e o valor é de 5% do
valor total do contrato.]
E assim,
a Câmara multiplicou obstáculos à livre iniciativa. Levantou enorme barreira
financeira aos novos empreendedores, reservando o mercado às empresas de
sempre, cujo principal ativo é o cadastro de mão de obra para aluguel. Pode ter
aberto a porta para organização de mais um cartel privado. Horas depois, mudou a rotulagem de produtos com organismos
geneticamente modificados ou derivados. Há mais de uma década é
obrigatório estampar nas embalagens, com destaque, a natureza transgênica dos
alimentos.
Trata-se da essência do direito
do consumidor à informação. O debate legislativo ampliava essa prerrogativa, até que o projeto
chegou à Comissão de Constituição e Justiça. Ali, o deputado Luis Carlos Heinze
(PP-RS) protagonizou um malabarismo: trocou o texto que
aumentava deveres dos grandes produtores por outro que reduz os direitos dos
consumidores.
Agora, a informação sobre os transgênicos “deverá atender ao tamanho mínimo de letra
definida no Regulamento Técnico de Rotulagem Geral de Alimentos Embalados”.
Aquilo que era obrigatório aparecer destacado no rótulo — bem visível ao
consumidor —, vai ficar reduzido a
letras e números de um milímetro. Ao
mesmo tempo, todo o rigor da lei foi direcionado aos competidores nas
prateleiras dos supermercados. Eles só podem dizer nas embalagens que seus
alimentos são “orgânicos” ou não
contêm organismos geneticamente modificados, se comprovarem “a total ausência” de transgênicos “por meio de análise específica”. Ou
seja, uma miríade de produtores agroindustriais foi lançada à sanha da
burocracia, com um aumento nos custos operacionais. Essa linha de montagem legislativa tem o
patrocínio do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Sua desenvoltura deve-se à lassitude do PT
e do PSDB. Cevados numa tediosa
disputa performática, acomodam-se diante de iniciativas como a redução da idade
penal, da liberação do comércio de armas e da restrição aos direitos de
populações indígenas. Dizem-se progressistas mas, paradoxalmente, deixam fluir
e até avalizam ameaças aos fundamentos da sociedade moderna. Foi o que se viu
na semana passada: sob a bandeira do liberalismo, instituiu-se até uma reserva de mercado aos financiadores de campanhas
eleitorais.
Fonte: O Globo - José
Casado