Chegar
de carrão, de moto, ter um celular, roupas caras. Exibir-se é a lei. Adolescentes fazem do crime
profissão para se destacar em bailes funk, conquistar garotas, transar
Havia uma
lombada providencial no meio da rua de cima da casa da avó de G.M., perto da favela de
Paraisópolis, no Morumbi, em São Paulo. Ele e um amigo estavam ali perto, à
espera de uma “deixa”. Um Peugeot 207
prata se aproximou. “A gente viu que era
uma mulher”, diz G., de 17 anos. Quando a motorista reduziu para transpor o
obstáculo, G., então com 15 anos, e o amigo aproveitaram. “A gente enquadrou ela”, diz. Usaram um revólver calibre 38, de
brinquedo, Airsoft, comprado de um camelô em Aparecida, no interior de São
Paulo. Tiraram a vítima do carro,
ficaram com sua bolsa e foram embora.
No começo do ano, L.L. arrumou uma mochila com pijama e disse à mãe que passaria a noite na casa de uma amiga. De fato foi, mas não para dormir – e sim para curtir. Ela e a amiga aproveitaram a ausência de adultos para ir a um fluxo. Trocaram a calça pelo shortinho curto, capricharam no decote da regata, colocaram bijuterias e se maquiaram. “Tem menina que nem de calcinha vai”, diz L. Antes de sair, fizeram o obrigatório selfie para postar no Facebook – “Partiu fluxo”, dizia a legenda. Fluxo é onde os interesses de adolescentes como G. e L. se encontram. Acontece na rua, apinhada de gente. Jovens e adolescentes dançam em passinhos ensaiados, ao som do funk que sai de carros tunados, daqueles que até balançam diante da potência inclemente dos alto-falantes, decorados com luzes neon.
Ali ocorre o ritual exibicionista ancestral.
As meninas mexem nos cabelos para chamar a atenção dos meninos e dançam, dançam até o chão. “Eles ficam assoprando maconha na nossa cara, chamando a gente de ‘novinha’, ‘linda’, ‘princesa’. Quando quero ficar com alguém, peço o WhatsApp e a gente fica trocando mensagem ali na hora, um na frente do outro”, diz L. Além de álcool e energéticos, consome-se uma versão repaginada do lança-perfume, doce e com sabor (chiclete, menta, coco, entre outros), por R$ 5 o vidro. Mais perigosa que a original, leva removedor de respingo de solda e tinta e pode provocar parada cardíaca. L. diz que só “baforou” isso uma vez. Prefere beber.
Todo mundo sabe que traficantes e afins estão por ali, armados; que boa parte da ostentação é coisa roubada; que muitos garotos ali estão no crime. Não importa. No fluxo, o que determina as escolhas, o destino, é chegar motorizado, bem vestido para os padrões, ter acessórios desejados. É preciso ostentar para impressionar. O garoto que quiser sair com L. só tem chance se estiver de carro ou de moto. “Vou ficar com menino que não tem carro? Não mostra tanto, o povo não vê. Eu gosto do HB20, que faz sucesso porque é bem bonito”, diz. “Já deixei de ficar com um menino porque ele não tinha carro. Quando tem, a gente dá um rolê no meio do fluxo, transa ali dentro mesmo, ou então vai pra motel.”
Enquanto descreve a prática, L., de 17 anos, mãe de uma menina de 1 ano, que teve com um presidiário de 38, fala sobre Tatu, o “menino mais lindo” com quem ficou em um fluxo. “Ele estava com um tênis Adidas de escama de peixe, boné e roupa Cyclone. Tava todo ‘ciclonado’”, diz, numa referência à marca do momento em seu universo. Nas lembranças da noite em que mais se “deu bem” num fluxo, entre risinhos de timidez típicos da adolescência, não há nenhum espaço para a conversa ou o físico do garoto. Tatu é lembrado como um cabide de marcas. “A menina fica com você pelas roupas – Lacoste, Hollister, Mizuno, Adidas – ou se você está de carro ou de moto”, afirma G. Os garotos sabem disso e obedecem.
Nos últimos meses, os códigos de conduta que se manifestam nos fluxos pela periferia afora ajudam a entender parte da criminalidade praticada por adolescentes em São Paulo. “Ostentar” é o verbo mais usado por adolescentes que roubam, furtam, sequestram na cidade. Em um caso trágico, no fim de junho, o menino Waldik Gabriel Chagas, de apenas 11 anos, morreu estupidamente com um tiro na nuca, disparado por um agente da Guarda Civil Metropolitana durante a perseguição. Waldik estava com dois garotos de 12 e 14 anos que haviam roubado um carro velho e fugiam. Um deles contou que o roubo fora praticado porque os três queriam “ostentar” com o carro em uma festa de rua.
Os crimes contra o patrimônio são os que mais levam jovens à Fundação Casa, a instituição que recebe os menores infratores no estado de São Paulo, segundo um levantamento recente do Ministério Público (MP-SP). Mais de 60% das infrações cometidas por menores no estado entre agosto de 2014 e abril de 2016 são associadas a furtos e roubos, quase três vezes mais que os casos de tráfico de drogas. Cada vez mais, educadores da Fundação Casa, juízes e promotores ouvem histórias semelhantes. “Em geral, eles primeiro negam. Quando falam, o discurso é o da ostentação”, afirma o desembargador Antonio Carlos Malheiros, do Tribunal de Justiça de São Paulo. “Sempre existiu o roubo para mostrar, mas o funk e a [cultura da] ostentação amplificaram isso.” Os adolescentes afirmam, com aquela franqueza de quem ainda guarda algum pingo de inocência, que roubam carros, motos e dinheiro para comprar tênis, roupas, celulares, acessórios para exibir-se nos fluxos e se dar bem – ser admirados, conquistar garotas e fazer sexo.
Rosto quase infantil para seus 17 anos, o corpo magro, em contraste com os braços, as pernas e o pescoço cobertos por tatuagens que vão dos temas religiosos aos de apologia da violência, H. L. está meio apático na sala da Fundação Casa. Mas seu rosto se ilumina ao falar sobre o assunto. “Quando você chega no baile com roupa de marca, fica bem visado, rouba a cena. Se encosta de motão, moto importada, carenada, que faz ronco – vrrmmm, vrrmmm –, as meninas ficam fazendo ‘psiu’, mexendo no cabelo, dando risadinha, dançando pra gente, pedindo pra dar uma volta, um ‘pião’”, diz. “O objetivo é curtir, senhora, ser feliz.” H. rouba desde os 12 anos. Já roubou carros, residências, lojas e fez a conhecida “saidinha de banco”. O produto sempre se transforma em consumo rápido e supérfluo. Gastou R$ 1.500, em um dia, em boné, chinelo e tênis. É roubar em um dia e gastar no outro. Logo na saída do shopping, H. faz a obrigatória foto com o celular para postar em uma rede social. Para que roubar, se não for para comprar e se exibir?
Ostentar é a manifestação de um desejo humano, independentemente da classe social. Corruptos despertam atenção quando compram carros esportivos ou helicópteros; rappers gastam em reluzentes correntes de ouro; os “funkeiros ostentação”, que embalam a vida de G., H. e L. nos fluxos, exaltam a exibição. “O problema é que, em alguns casos, o sujeito não encontra freios inibitórios [contra cometer crimes] em valores pessoais. É o mesmo sentimento que faz com que o sujeito se envolva no petrolão”, afirma o promotor da Infância e Juventude Tiago Rodrigues, do Ministério Público do Estado de São Paulo. Há 20 anos, jovens roubavam tênis importados para se diferenciar dentro de um grupo. Hoje, os tênis não diferenciam mais ninguém, tornaram-se pequenos para suas aventuras: com a proliferação da pirataria, todos podem comprar uma réplica. “Então o garoto rouba o carro bonito, a moto bacana. Houve uma escalada de violência”, afirma o desembargador Reinaldo Cintra, vice-coordenador da Infância e Juventude de São Paulo.
Continuar lendo: ÉPOCA