Recusar-se a olhar para os números do vírus é negar as evidências que eles estão mostrando
Esses números não são bons nem ruins — são apenas o que são, não mais e não menos. Mas dizer que eles são o que são tornou-se num ato tido como imoral, politicamente perverso e contrário ao interesse da humanidade pelas forças que decidem sobre o bem e o mal nas sociedades de hoje. Não se trata, nem mesmo, de discutir se tais cifras justificam o fechamento do mundo por seis meses; o crime social está simplesmente em falar delas. A denúncia-padrão, quando se observam as realidades aritméticas da epidemia, é: “negacionismo”, ou a atitude de negar uma verdade que pode ser verificada pelos fatos ou pela ciência. Nunca se diz, entre os militantes do “distanciamento social” por tempo indeterminado, que recusar-se a olhar para os números da covid-19 é negar, aí sim, as evidências que eles estão mostrando.
O livre debate sobre a epidemia está interditado. É como se o mundo estivesse de volta à Idade Média, quando os padres proibiam as pessoas de pensar com algum realismo sobre a peste. A culpa era do diabo, dizia a Igreja, e todo mundo tinha de ficar satisfeito com a explicação; quem quisesse saber mais do que isso, ou algo diferente disso, era acusado de desafiar os planos de Deus para os homens. Com a covid-19, na verdade, não está havendo apenas a eliminação da verdade numérica — desde o começo da epidemia há uma guerra declarada contra os números reais. No Brasil, permanece até hoje sem contestação por parte das “agências de verificação de notícias falsas” — e como um fato levado perfeitamente a sério pelas classes intelectuais — a previsão de que haveria “1 milhão de mortos” se não fossem tomadas medidas extremas de repressão para deter o vírus. Não foram tomadas essas medidas; o total de mortes no Brasil está abaixo de 140.000 [atualizando; < 150 mil]. Nem somando as mortes atribuídas à covid-19 no mundo inteiro chegou-se a esse 1 milhão, mas e daí? O candidato que se opõe a Donald Trump nas próximas eleições norte-americanas acaba de dizer que os mortos nos Estados Unidos chegam a “200 milhões”, ou quase dois terços de toda a população do país. Contanto que seja para anunciar algum horror da epidemia, qualquer um pode dizer qualquer coisa. Ninguém vai reclamar de nada.
Considera-se como ato de sabotagem à “luta pela vida” a menção a outras doenças que matam
nem os médicos especialistas em dar entrevistas para a televisão, todos eles generais na campanha para fechar o mundo, chegam a dizer isso. Mas é evidente que não causam nenhuma reação entre o partido do “fique em casa”; na verdade, considera-se como ato de sabotagem à “luta pela vida” a mera menção de que essas e outras doenças matam gente todos os dias. O motivo é que ninguém até hoje teve a ideia de aproveitar politicamente nenhuma delas para promover as suas “agendas”, como se diz. Com a covid, porém, está sendo diferente: os interessados descobriram em 15 minutos que dava para tirar proveito político do vírus — proveito de primeira grandeza, uma oportunidade que aparece uma vez na vida e não poderia ser desperdiçada.
Desde então, apostam tudo na covid. Nenhuma greve geral, quebra-quebra de black bloc ou discurseira tida como “revolucionária” chegou perto, até hoje, da eficácia que o pânico construído em torno da epidemia teve na agressão ao sistema produtivo — ou na usinagem de oposição política. Em países como o Brasil ou os Estados Unidos, aproveitaram para jogar a culpa nos governos. As mortes, por essa visão das coisas, não foram causadas pelo vírus. Ao mesmo tempo, as “autoridades locais” que cuidaram dos doentes não têm nenhuma responsabilidade em nada do que está acontecendo. Quem matou foram os presidentes Bolsonaro e Trump. No mundo desenvolvido, foi uma oportunidade caída do céu para combater o sistema econômico, social e político que “está aí” — injusto, causador de desigualdade, opressor de mulheres, racista, inimigo da diversidade, capitalista selvagem, aquecedor da calota polar e culpado pela derrubada da floresta amazônica.
No Brasil, como de costume, há um plus a mais. Enquanto se reproduzem as grandiosas ideias para melhorar a humanidade e criar “um novo estilo de vida”, há os interesses materiais de todos esses governadorzinhos a caminho do anonimato, fiscais de prefeitura e a turma inteira dos ladrões de respiradores, “hospitais de campanha” e aventais descartáveis. É o Covidão em marcha triunfal. Não é o Petrolão de Lula-Dilma, porque nada jamais será parecido, mas já é alguma coisa. Pense um pouco, portanto, da próxima vez que lhe jogarem algum número em cima. A aritmética do “fique em casa” não é a mesma da tabuada.
Veia o artigo de Guilherme Fiuza desta edição, “Vacina contra ditadura”
J.R. Guzzo, jornalista - Revista Oeste