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quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Dirigir não é brincar em videogame



A divulgação de novas circunstâncias do capotamento que matou Cristiano Araújo e a namorada faz pensar sobre o que é dirigir um carro hoje
No início desta semana saiu a notícia de que a caixa preta do carro registrava a velocidade de 179 km/h apenas 5 segundos antes do capotamento que vitimou o cantor Cristiano Araújo e sua namorada Aliana Moraes. No mesmo dia, testemunhei diálogo em que um dos interlocutores comentou que nem um Land Rover é seguro a tal velocidade, ao que o outro respondeu, “o problema não foi o capotamento, foi não utilizar o cinto de segurança”.
Fiquei um tempo remoendo essa conversa, talvez dando a ela uma importância excessiva. 

 Mas algo me incomodava ali. O segundo comentário, particularmente, não me parecia bem encaixado. A princípio, achei que meu estranhamento tinha raízes em alguma forma de insensibilidade de minha parte. Afinal, quando li a notícia reagi imediatamente condenando o condutor pelo abuso da velocidade. Aquele segundo interlocutor, por seu lado, pareceu ter sentido antes de tudo a perda de duas vidas. Minha ruminação, entretanto, não parou aí. Então percebi que o comentário do primeiro interlocutor também não me soava muito bem. Era como se o rapaz de alguma maneira esperasse que a evolução tecnológica algum dia venha a permitir que nossos veículos trafeguem a 200 km/h, ou até mais, sem o risco de capotar. De novo suspeitei estar um tanto um fora de sintonia – o que poderia estar errado em desejar carros mais seguros que os atuais?

Foi aí que dei conta de ter lido uns três ou quatro artigos alguns anos atrás sobre os efeitos que carros mais seguros produzem sobre o comportamento de condutores. Lamento não ter guardado essas referências para compartilhar com os leitores, mas vou tentar recuperar a linha dos argumentos, correndo o risco, claro, de não ser tão fiel ao trabalho dos autores.  Em linhas gerais, os trabalhos mostravam como podemos dirigir nossos carros hoje como se pilotássemos um console de videogame.  

Quando nosso carro tinha direção mecânica, manobrá-lo nos dava uma percepção bastante razoável do peso do veículo e, portanto, do esforço que seus diversos mecanismos empregavam para mantê-lo sob controle. O hábito de dirigir com os vidros abertos, quando condicionadores de ar eram raridades reservadas apenas aos modelos mais luxuosos, nos colocava em contato próximo com o ambiente externo e seus ruídos, permitindo-nos reagir com razoável prontidão a determinadas ocorrências imperceptíveis via visão.

Nos dias de hoje, as janelas fechadas, os vidros escurecidos, o ar condicionado, a direção hidráulica ou eletrônica, a compensação de tração, sem falar nos freios ABS, são mecanismos comuns mesmo em modelos básicos. Claro que é muito positivo que nossos carros sejam mais confortáveis e seguros do que eram os dos nossos pais. Mas, como diziam os autores dos artigos que eu li, os cuidados que a indústria automotiva tem com quem está dentro dos carros não encontra correspondência nos cuidados que condutores vêm dispensando com quem está fora. Poder correr muito sem capotar – ou capotar mas escapar ileso acaba significando que só importa o que vai dentro da armadura.

Certamente não era isso que passava pela cabeça dos dois colegas que comentavam as circunstâncias das mortes de Cristiano e Aliana. Mas acabei descobrindo que as razões de meu desconforto estão na insuficiência da formação cidadã que estamos dando a essa geração de motoristas de PlayStation.

Fonte: Paulo Cesar Marques da Silva Engenheiro, doutor em estudos de transportes pela University College London (Reino Unido), é professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília.