A
divulgação de novas circunstâncias do capotamento que matou Cristiano Araújo e
a namorada faz pensar sobre o que é dirigir um carro hoje
No início desta semana saiu a notícia de
que a caixa preta do carro registrava a velocidade de 179 km/h apenas 5 segundos antes do capotamento que vitimou o cantor Cristiano
Araújo e sua namorada Aliana Moraes. No mesmo dia, testemunhei diálogo em que
um dos interlocutores comentou que nem um Land Rover é seguro a tal velocidade,
ao que o outro respondeu, “o problema não
foi o capotamento, foi não utilizar o cinto de segurança”.
Fiquei um
tempo remoendo essa conversa, talvez dando a ela uma importância excessiva.
Mas
algo me incomodava ali. O segundo
comentário, particularmente, não me parecia bem encaixado. A princípio,
achei que meu estranhamento tinha raízes em alguma forma de insensibilidade de
minha parte. Afinal, quando li a notícia reagi
imediatamente condenando o condutor pelo abuso da velocidade. Aquele
segundo interlocutor, por seu lado, pareceu ter sentido antes de tudo a perda
de duas vidas. Minha ruminação, entretanto, não parou aí. Então percebi que o comentário do primeiro interlocutor
também não me soava muito bem. Era como se o rapaz de alguma maneira
esperasse que a evolução tecnológica algum dia venha a
permitir que nossos veículos trafeguem a 200 km/h, ou até mais, sem o risco de
capotar. De novo suspeitei estar um tanto um fora de sintonia – o que
poderia estar errado em desejar carros mais seguros que os atuais?
Foi aí
que dei conta de ter lido uns três ou quatro artigos alguns anos atrás sobre os
efeitos que carros mais seguros produzem sobre o
comportamento de condutores. Lamento não ter guardado essas referências
para compartilhar com os leitores, mas vou tentar recuperar a linha dos argumentos,
correndo o risco, claro, de não ser tão fiel ao trabalho dos autores. Em linhas gerais, os trabalhos mostravam como
podemos dirigir nossos carros hoje como se pilotássemos um console de
videogame.
Quando nosso carro tinha
direção mecânica, manobrá-lo nos dava uma percepção bastante razoável do
peso do veículo e, portanto, do esforço que seus diversos mecanismos empregavam
para mantê-lo sob controle. O hábito de
dirigir com os vidros abertos, quando condicionadores de ar eram raridades
reservadas apenas aos modelos mais luxuosos,
nos colocava em contato próximo com o ambiente externo e seus ruídos, permitindo-nos
reagir com razoável prontidão a determinadas ocorrências imperceptíveis via
visão.
Nos dias
de hoje, as janelas fechadas, os vidros escurecidos, o
ar condicionado, a direção hidráulica ou eletrônica, a compensação de tração,
sem falar nos freios ABS, são mecanismos comuns mesmo em modelos
básicos. Claro que é muito positivo que nossos carros sejam mais confortáveis e
seguros do que eram os dos nossos pais. Mas, como diziam os autores dos artigos
que eu li, os cuidados que a indústria automotiva tem com quem está dentro dos
carros não encontra correspondência nos cuidados que condutores vêm dispensando
com quem está fora. Poder correr muito
sem capotar – ou capotar mas escapar
ileso – acaba significando que só importa o que vai dentro da armadura.
Certamente
não era isso que passava pela cabeça dos dois colegas que comentavam as
circunstâncias das mortes de Cristiano e Aliana. Mas acabei descobrindo que as
razões de meu desconforto estão na insuficiência da formação cidadã que estamos
dando a essa geração de motoristas de
PlayStation.
Fonte: Paulo Cesar Marques da Silva Engenheiro, doutor em estudos de transportes pela
University College London (Reino Unido), é professor do Departamento de
Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília.
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