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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Pode o juiz falar?

Juízes representam uma instituição cuja autoridade depende de sua imagem de imparcialidade

O Judiciário brasileiro não é carente de juízes boquirrotos. Importa pouco se o veículo é o microfone de jornalista, a palestra para executivos ou a rede social. Magistrados das altas Cortes têm emitido comentários públicos sobre assuntos variados do país. Naturalizamos a opinião judicial instantânea: basta cozer por poucos minutos, e ela sai pronta para consumo externo. São opiniões pré-sentença, de bate-pronto, que fingem não antecipar a decisão final, mas revelam premissas e inclinações do juiz. Opiniões pré-sentença dispensam até mesmo a existência de um caso. O juiz opinioso não ouve argumentos ou contra-argumentos, não respeita o processo e seu tempo. Entrega-se à ansiedade do protagonismo, queima a largada e sai falando o que manda seu instinto, que pode ser de autoproteção ou de proteção de suas alianças de poder.

Há exemplos muito diversos por todas as instâncias. Para lembrar de alguns recentes, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, diante das gravações de Joesley Batista, afirmou que a “primeira providência que deveria ser tomada era prender eles” e sugeriu que “passassem do exílio nova-iorquino para o exílio da Papuda”; o ministro Gilmar Mendes, em prática serial de críticas à Operação Lava Jato, disse que “precisam de psiquiatras, não de corregedores”; o ministro Alexandre de Moraes não resistiu a comentar a recomendação do Comitê de Direitos Humanos da ONU sobre direitos eleitorais de Lula, reduziu o órgão a “subcomitê do comitê” e concluiu que “cada macaco no seu galho”.

Não é difícil intuir algo de errado nessas condutas, mas temos de investigar exatamente o quê. O caminho mais rápido é olhar para regras legais sobre comportamento judicial: a Constituição Federal (Art. 95, III), a Lei Orgânica da Magistratura (Art. 36, III), o Código de Ética da Magistratura ou o Provimento nº 71 do Conselho Nacional de Justiça. Essas regras estabelecem limites genéricos ao que o juiz pode dizer ou fazer: não podem desempenhar “atividade político-partidária”, antecipar julgamento sobre casos pendentes, nem criticar colegas de modo depreciativo. Devem também ter decoro e discrição para preservar a confiabilidade e a independência judicial. Em defesa de sua conduta pública ruidosa, por sua vez, juízes têm invocado o direito à liberdade de expressão.

Para entender o que está em jogo, há que fazer caminho mais longo e observar a filosofia por trás das regras. Uma forma de descrevê-la parte do conceito de estado de direito, o ambicioso projeto do “governo das leis, e não dos homens”.
Apesar da eloquência dessa máxima, que parece pedir juízes sobre-humanos, robôs desencarnados de sua subjetividade, ela quer dizer algo mais modesto: juízes representam uma instituição cuja autoridade depende de sua imagem de imparcialidade.

Ao escolherem a carreira, submetem-se a uma disciplina que não é só intelectual, mas também institucional; a uma ética que não é só a geral, aplicada a qualquer cidadão, mas a uma ética particular à função.

Quando o ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça, foi criticado por sua enquete no Twitter sobre a exótica figura da “intervenção militar constitucional”, respondeu que tem “liberdade de auscultar a sociedade”: “Posso assegurar a liberdade de expressão de mais de 200 milhões de brasileiros no meu exercício profissional, mas, paradoxalmente, não posso expressar a minha liberdade de querer entender o pensamento dos meus seguidores?”. O ministro Luiz Fux, ao sugerir “exílio na Papuda”, ressaltou fazê-lo “em meu nome pessoal”. Fernandes e Fux nos pedem que separemos suas opiniões como juiz de suas opiniões como cidadãos comuns. Essa separação, porém, é impraticável: um juiz não consegue se desvestir do papel de juiz quando vai ao espaço público. Sua fala vem com o carimbo da autoridade e à luz desse carimbo será interpretada.
A “liberdade de expressão do Estado (e de seus agentes, como juízes, policiais ou promotores) não equivale à “liberdade de expressão contra o Estado”, atribuída a qualquer indivíduo. Por boas razões, a primeira carrega fardo mais pesado que a segunda. Se aceitamos a premissa, não basta ao juiz invocar sua liberdade de expressão quando se pronuncia em público.

Conrado Hübner Mendes - Época