A quitanda não tem troco, mas vende fiado emendas constitucionais
O professor Delfim Netto avisou que a partir do dia 2 de janeiro o
governo precisaria abrir a quitanda todas as manhãs oferecendo
beringelas e troco à freguesia. A quitanda tem oferecido encrencas,
baixarias e tuítes. Se isso fosse pouco, o "Posto Ipiranga" de
Jair Bolsonaro vende fiado três projetos de emendas constitucionais,
daquelas que precisam de três quintos das duas Casas do Congresso.
Pode-se até pensar que a da reforma da Previdência será aprovada. Qual? A
que conseguir os três quintos.
Como se planejasse dificuldades, o ministro Paulo Guedes anunciou que
pretende propor a desvinculação das despesas orçamentárias. Nova emenda
constitucional. Tem mais. Uma medida provisória determinou que as
contribuições sindicais não podem ser descontadas na folha de pagamento
dos trabalhadores. Ótima ideia, porque a nobiliarquia do sindicalismo
quer que os trabalhadores tenham todos os direitos, menos o de decidir
se contribuem para suas guildas. [só que o dever dos sindicalizados contribuírem para suas guildas é o único direito que é defendido pelos líderes sindicais pelegos - caso existam não pelegos, com certeza não chegam a dez.] O fim do desconto compulsório abalará
todos os sindicatos, que bem ou mal, devem cuidar dos interesses dos
trabalhadores. Para evitar esse colapso surgiu outra boa ideia, acabar
com a unicidade que obriga que cada categoria tenha um só sindicato por
município. Em tese, havendo competição, o sistema funcionará melhor.
Para o estabelecimento da pluralidade será necessária uma terceira
emenda constitucional.
Vistas separadamente, cada uma dessas propostas faz sentido. Juntas,
coligam os interesses dos sindicalistas, dos marajás da Previdência às
corporações da saúde ou da educação. Separados, esses blocos podem ser
batidos. Juntos, até hoje estão invictos. Há na pregação do ministro Paulo Guedes algo de José Wilker no comando
da inesquecível caravana Rolidei do "Bye Bye Brasil" de Cacá Diegues.
Quem viu o filme lembra que no seu momento de glória poética o Lord
produziu o supremo símbolo da modernidade: neve.
A plataforma reformista de Guedes tem suas próprias dificuldades, mas a
elas somou-se à natureza errática do próprio presidente, que não pode
ver casca de banana sem atravessar a rua para escorregar nela. Em menos
de cem dias, Bolsonaro viu-se encoberto pela névoa de um possível
controle palaciano. É a velha lenda segundo a qual grandes ministros são
capazes de controlar presidentes. Donald Trump está aí para demonstrar a
futilidade dessa ideia. No Brasil, a teoria do controle interno teve dois grandes fracassos e um
êxito. Pensou-se que Fernando Collor seria controlado. Deu no que deu.
Antes dele, pensou-se em blindar o comportamento errático do general
João Figueiredo. A trama derreteu em menos de um mês.
O controle funcionou no caso do general Emilio Médici. De 1969 a 1974,
quando ele presidiu o Brasil, mandaram os professores Delfim Netto (na
economia), João Leitão de Abreu (na administração) e o general Orlando
Geisel (nas Forças Armadas). A manobra só deu certo porque foi
voluntária e sincera. Médici, que não queria ser presidente, decidiu
delegar esses poderes. Ao decidir não mandar, mandou como poucos, até
porque tinha o cajado do Ato Institucional nº 5. Faltam a Bolsonaro não
só o AI-5 como a disciplina circunspecta de Médici. (Vale lembrar que,
sabendo o risco que corria por ter dois filhos adultos, levou-os para o
quartel do Planalto. De um deles, Roberto, pouco se falou. Do outro,
Sérgio, nada.)
O governo Bolsonaro parece sem rumo. A má notícia é que seu rumo pode vir a ser o de uma crise.
Eloio Gaspari, jormalista - O Globo