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domingo, 9 de maio de 2021

Caso Porto Real: menina morta por mãe e madrasta passou nove meses isolada e foi torturada por beber leite sem autorização

Ketelen, de 6 anos, morta após uma sessão de espancamento em Porto Real, no Sul Fluminense, viveu uma rotina de agressões, fome e medo depois que mãe foi morar com a madrasta. As duas estão presas pelo crime 

Esquecidas num canto, em cima de uma mesinha tosca de madeira, as sandálias gastas de plástico com o desenho da Branca de Neve são a única prova física de que Ketelen Vitória Oliveira da Rocha, de 6 anos, passou os últimos nove meses de sua vida na casa humilde do bairro Jardim das Acácias, em Porto Real, no Sul Fluminense. 
Mas Ketelen não teve uma vida de princesa. Sua infância foi engolida pela violência doméstica. 
Seus brinquedos foram jogados fora pela madrasta, Brena Luane Nunes, de 25 anos. Não tinha amigos nem brincava. Não podia ir à escola, sair de casa ou botar os pés no quintal.  
Sua alimentação se resumia a café e farinha. Vivendo com quatro mulheres adultas, era a única a dormir no chão. Sofria frequentes sessões de espancamento. 
Na última delas, foi torturada, açoitada, atirada de uma ribanceira e agredida por 48 horas até ser levada para o hospital e morrer, em 24 de abril. Pelo crime, Brena, sua companheira e mãe de Ketelen, Gilmara de Farias, de 27 anos, e a mãe de Brena, Rosângela Nunes, estão presas.

Ketelen morreu num hospital particular em Resende, no Sul Fluminense. Chegou lá transferida do Hospital Municipal São Francisco de Assis, em Porto Real, onde deu entrada no dia 19, levada pelas mulheres, após ser espancada entre os dias 16 e 18. A casa onde a menina viveu seus últimos meses tem infiltrações nas paredes, três pequenos quartos e apenas três janelas — uma delas, fechada com cimento por Brena. As outras duas, dizem moradores do bairro, ficavam quase sempre fechadas ou entreabertas. Segundo o depoimento de Rosângela na 100ª DP (Porto Real), sua filha queria evitar contato com os vizinhos.

— A criança não colocava a cara no quintal. Havia uma lona preta que ficava estendida na varanda, e a janela ficava fechada. A menina não tinha contato com outras crianças. Eu mesma só a vi uma vez, assim mesmo quando ela estava chegando, no ano passado. Nem sabia que ela morava ali. Só soube quando a polícia esteve lá — disse uma vizinha.

Maria Aparecida Barbosa Nunes, de 86 anos, avó de Brena, é a única que permanece no imóvel. Ketelen dormia no mesmo cômodo que a idosa. Já Brena e Gilmara usavam um quarto um pouco maior, onde havia uma cama de casal. O outro cômodo era ocupado por Rosângela.[será que algum advogado, ou alguém da turma dos 'direitos dos manos' vai invocar tratamento privilegiado para a idosa? Ao que se percebe ela tinha oplena confiança do que ocorria e condições de interferir.]

Maria Aparecida diz que a neta não gostava de Ketelen por ter ciúmes da relação da menina com a mãe. A idosa, cega do olho esquerdo, diabética e com dificuldade para andar, contou já ter sido espancada pela neta mais de uma vez. — A Brena me batia à toa. Bastava ela beber. Minha filha Rosângela não fez nada. Ela só não denunciou tudo porque a Brena dizia que mataria a mim e a ela também. Brena vivia falando que não gostava da Ketelen. Jogou fora os brinquedos que a menina trouxe quando veio morar aqui — disse a idosa, que ganha um salário mínimo de pensão e tinha o dinheiro usado pela neta. — Eu só conseguia fazer um pouco da compra para a casa. O resto a Brena gastava tudo com bebida.

Uma menina doce
Uma menina doce, fã de Peppa Pig, que adorava brincar e sonhava ser bailarina. Assim o vendedor desempregado Roger Fabrizius da Rocha, de 32 anos, define a filha Ketelen. Sem ver a garotinha desde 2019 — segundo ele, devido a desentendimentos com a família de Gilmara, de quem se separou quando a menina tinha 1 ano — Roger só voltou a ver a filha intubada no hospital, lutando pela vida. Uma cena que não sai de sua cabeça: Olhei minha filha intubada e vi as marcas das agressões que ela sofreu. Ter visto ela daquele jeito me chocou muito. Fiquei chorando, e a médica veio conversar comigo. Ela me disse que minha filha tinha poucas chances de sobreviver, mas que estavam fazendo tudo para salvar a Ketelen.

Roger ainda se lembra da última vez em que esteve com a filha, em 2019. A menina ficou 20 dias com ele e a avó paterna. Depois, passou o Natal com a mãe. Segundo Roger, até então a criança nunca havia reclamado de ser maltratada por Gilmara: — Minha filha tinha uma vida normal. Também tinha o colégio, onde estudava certinho. Uma vez, ela me contou que queria ser bailarina porque achava a dança bonita. E eu disse: “Filha, papai vai ver isso”.

Postagens em redes sociais da própria Gilmara confirmam que, pelo menos até 2019, ela fazia questão de demonstrar afeto pela filha. Numa delas, em 21 de setembro de 2019, lembrou da felicidade que sentiu ao descobrir que estava grávida de Ketelen e escreveu “amor da mamãe, minha linda!”. Ainda grávida, em 2014, postou: “Estou muito feliz, estou esperando uma menina. Minha filha foi um grande presente que Deus me deu. A mamãe te ama, filha”.

Gilmara contou à polícia que conheceu Brena pela internet. Começaram a se relacionar à distância. Em julho de 2020, mudou-se com a filha de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, para viver com a companheira em Porto Real. E a violência começou.  O laudo cadavérico de Ketelen, feito por peritos do Instituto Médico-Legal (IML) de Resende, e o boletim de Atendimento Médico do Hospital Municipal São Francisco de Assis, em Porto Real, onde ela recebeu os primeiros socorros, revelam a brutalidade do espancamento sofrido por Ketelen. O exame no IML constatou que a criança foi torturada com queimaduras, provavelmente produzidas por um cigarro: “Sete lesões circulares medindo de dez a 15 milímetros sobre a coluna vertebral compatíveis com queimaduras provocadas por objeto arredondado, revelando nítidos requintes de crueldade”, escreveu o legista.

O laudo registra que Ketelen tinha incontáveis escoriações na face, algumas com características de terem sido produzidas por arrastamento, e edemas nos lábios compatíveis com uma ação contundente. Foram constatados ferimentos no tronco, nas costas e escoriações lineares, que segundo a perícia, podem ter sido feito por golpes de mangueira ou algo semelhante — segundo as investigações da polícia, Ketelen foi chicoteada com um cabo de TV. Também foram encontradas marcas roxas na barriga da vítima. A causa da morte da menina foi hemorragia intracerebral decorrente de traumatismo cranioencefálico.

‘O pulmão se fechou’
Segundo Fábio Silva, diretor administrativo do São Francisco de Assis, Ketelen chegou ao hospital desacordada. Na ocasião, Gilmara alegou que os ferimentos na filha eram resultado de bater a cabeça no mourão de uma cerca. Um exame dos médicos, porém, constatou sinais de agressão. A equipe médica percebeu sinais de agressão e chamou a Guarda Municipal. A Polícia Militar também foi acionada. A criança tinha inchaços, inclusive no rosto, e marcas roxas em uma orelha. Ela foi encaminhada para tomografia que constatou um trauma cranioencefálico. O pulmão esquerdo se fechou. Encontramos também marcas de chibatadas na lateral e nas costas — relata ele.

Ao ser interrogada pela polícia, Gilmara acabou confessando o crime e apontou Brenda como sendo uma das autoras do espancamento. As duas foram presas e acabaram trocando acusações sobre quem teria espancado a criança por mais tempo. Rosângela também acabou tendo a prisão preventiva decretada pela Justiça, a pedido do Ministério Público, por ter se omitido durante as agressões.

A sessão de espancamento que levou à morte de Ketelen teria tido início após a menina derramar duas caixas de leite quando tentava beber escondida, por estar com fome. De acordo com a denúncia do MP, a garotinha era alimentada uma vez por dia. O argumento usado por Gilmara e Brena para manter Ketelen trancada num quarto, segundo a denúncia, era que “a vítima precisava ser educada”.

A morte de Ketelen causou comoção em Porto Real, que tem cerca de 20 mil habitantes. Segundo a conselheira tutelar e psicóloga Fabíola Silva Lima, de 52 anos, o órgão não havia recebido qualquer denúncia sobre as agressões:  — Quando uma família vem de mudança para Porto Real, geralmente nos procura para auxiliarmos numa vaga para uma criança num colégio da rede municipal. Ninguém nos procurou antes para falar da Ketelen. Nem para vaga na escola nem para denunciar agressão. Só soubemos do que estava acontecendo quando ela chegou em estado grave ao hospital e muito machucada. Uma denúncia pode salvar uma vida e, no caso da Ketelen, isso não aconteceu.

Brena e Gilmara estão presas em celas diferentes no Complexo de Gericinó, na Zona Oeste do Rio, separadas das outras presas. Rosângela aguarda, numa unidade do interior, a transferência para a capital. Já Ketelen voltou para perto do único lugar onde foi feliz: seu corpo está sepultado no Cemitério de Japeri, na Baixada, onde o pai mora.

[como de hábito, no Brasil, terra da impunidade, a preocupação maior é em preservar, garantir a vida dos criminosos.
É urgente que a Constituição Federal seja adaptada para retirar cláusulas que só servem para proteger bandidos - são pétreas, que não podem ser eliminadas por Emenda Constitucional, mas NADA impede que se faça uma Constituinte para emendar um ou dois pontos da CF.
Certos crimes, tipo o que vitimou a Ketelen Vitória, o menino Henry, precisam ser punidos com todo o rigor da lei, de forma a realmente desestimular outros doentes.Tanto que, a prisão perpétua ou mesmo a pena de morte simples se revelam inadequadas, pelo pouco efeito didático.
O mais eficaz para coibir tais práticas é a morte demorada, executada com recursos modernos que permitem a 'tortura sem dor' e 'sem perda de consciência' por parte do apenado. 
Só assim, acabamos com crimes tão repugnantes.]
 
Rio - O Globo