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quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Abigail Disney - A herdeira milionária que vive no mundo mágico da lacração - IDEIAS

Ideias - Omar Godoy

Perfil   

Quando Abigail Disney fez 21 anos, ela foi informada que acabara de receber uma fortuna de herança, fruto do império de entretenimento que leva o nome de seu tio-avô Walt Disney. 
Mas, ao contrário da reação que eu – e acredito que você também - teria, ela detestou. “Eu fiquei muito, muito aborrecida. Diria até que fiquei traumatizada com o número”, conta Abigail.  
 
O “trauma” a fez seguir um caminho diferente. Em vez de trabalhar nas empresas da família, preferiu se tornar uma justiceira social, que faz protestos contra o uso de jatinhos particulares (que ela descobriu abominar quando se viu voando sozinha em um Boeing 737). 
O editor Omar Godoy conta a história de Abigail, que guarda muitas semelhanças com outras pessoas que nasceram em berço de ouro graças ao esforço dos pais, mas parecem se ressentir disso.

Abigail Disney durante um protesto ambientalista em Nova York contra o uso de jatinhos particulares| Foto: Divulgação/Margaret Klein (Climate Emergency Fund)

“Era uma espécie de cerimônia. Quando completávamos 21 anos, nosso advogado nos levava para almoçar e informava quanto havíamos herdado. Quando chegou a minha vez, em 1981, soube que receberia US$ 10 milhões [R$ 49,2 milhões na cotação atual]. Eu fiquei muito, muito aborrecida. Diria até que fiquei traumatizada com o número.”

É assim que Abigail Disney,
herdeira de um dos maiores conglomerados de entretenimento do planeta, costuma contar como ela e seus três irmãos descobriram que seriam ricos para sempre. Sobrinha-neta de Walt, neta de Roy Oliver (cofundador da companhia) e filha de Roy Edward (responsável pelo chamado “renascimento da Disney”, no final da década de 1990, quando a empresa voltou a produzir animações de sucesso, como ‘A Pequena Sereia’ e ‘O Rei Leão’), ela seguiu os passos da família e também atua no meio audiovisual.

Seu campo de trabalho, no entanto, não é o dos desenhos, comédias ou filmes de aventura. Aos 63 anos, Abigail é uma ativista política e diretora de documentários que buscam denunciar a opressão contra os menos favorecidos.  
Uma atividade nobre em se tratando de uma mulher privilegiada, com ótima educação superior (fez cursos em Yale, Stanford e Columbia) e dona de um patrimônio atualmente estimado em cerca de US$ 500 milhões (R$ 2,46 bilhões na cotação atual).
 
Mas, para parte da opinião pública norte-americana, Abigail é uma milionária mimada e vaidosa, que encontrou na justiça social uma janela para se promover e sair da sombra de seus parentes famosos. 
Sua última “sinalização de virtude”, como se diz nos EUA, aconteceu há duas semanas, quando ela foi detida e fichada em um aeroporto de Nova York durante um protesto contra o uso de jatinhos particulares.

Liderados por entidades ambientalistas, os manifestantes invadiram a pista e formaram uma espécie de barreira humana, rapidamente desfeita pela polícia — o que não impediu a circulação global dos registros em fotos e vídeos. Dias depois, Abigail escreveu um artigo para o jornal britânico The Guardian sobre o ocorrido intitulado “Eu costumava andar de avião particular, agora prefiro ser presa protestando contra eles”.

O texto defende a ideia de que os voos privados são insustentáveis e moralmente indefensáveis em tempos de uma suposta catástrofe ecológica iminente. 
E traz uma passagem na qual a herdeira do império Disney relata como se conscientizou com relação à causa. “Meu pai tinha um Boeing 737 com uma cama queen size. Eu adorava aquele avião. 
Mas, um dia, voando sozinha da Califórnia [seu estado natal] para Nova York [onde mora], tive uma epifania. 
Meu conforto e conveniência de repente pareciam problemas ridiculamente pequenos quando confrontados com o trem de carga climático que está vindo em nossa direção.”

Em tempo: no dia seguinte da publicação, o Guardian retirou do artigo a informação de que 50% das emissões de carbono da aviação são causadas por jatos particulares. “O dado foi baseado em uma leitura incorreta das estatísticas”, explicou o jornal.

Para a ativista, a Disney perdeu sua “bússola moral”
Casada com o produtor de cinema Pierre Hauser e mãe de quatro filhos, Abigail gosta de dizer que se converteu ao progressismo na universidade de Yale, no início dos anos 1980, quando ganhou de uma amiga camisetas com a imagem de Che Guevara e o símbolo dos sandinistas da Nicarágua. “Na faculdade, entendi que Ronald Reagan não era uma boa pessoa. E meus pais adoravam o chão por onde ele pisava. Isso se tornou uma coisa muito dolorosa para mim”, afirmou, em 2019, à revista New Yorker.

Essa foi apenas uma das várias ocasiões em que a diretora expôs ou criticou publicamente a própria família e a fonte de sua fortuna. Segundo ela, o pai trocou a mãe, doente de Alzheimer, por uma mulher muito mais jovem, e o tio-avô, Walt, era racista, sexista e antissemita. Mas o ponto alto desse fogo amigo foi a produção de ‘The American Dream and Other Fairy Tales’ (‘O Sonho Americano e Outros Contos de Fadas’), um filme-denúncia sobre as péssimas condições de trabalho nos parques da Disney.

Lançado no ano passado, o documentário acompanha a rotina de quatro funcionários da Disneylândia, na Califórnia. Com sérias dificuldades para sobreviver devido aos baixos salários recebidos, alguns deles chegam a procurar comida no lixo para alimentar seus filhos. “A Walt Disney Co. seguiu o caminho de quase todas as grandes companhias deste país e também começou a se achar maior do que tudo. Era uma empresa mais humana, gentil e bondosa. Mas perdeu sua bússola moral”, disse a cineasta durante a divulgação do longa.

Em uma nota enviada à imprensa, um porta-voz do conglomerado afirmou: “O relato da ativista social e cineasta é um exagero grosseiro e injusto dos fatos”. O comunicado ainda traz informações que contestam a narrativa do filme — especialmente quanto à política de correção salarial, cobertura de saúde, assistência infantil e acesso ao ensino superior gratuito, entre outros benefícios oferecidos pela empresa.

Nos bastidores, comenta-se que o documentário é fruto de uma picuinha pessoal envolvendo Abigail e Robert Iger, CEO da companhia e sistematicamente condenado pela herdeira por conta dos altos salários e bônus anuais que define para si.
A rixa teria começado em 2003, quando seu pai pediu para deixar o conselho da Disney, em um movimento que teve como consequência a escalada de Iger (notório por dobrar a receita global da empresa em sua gestão). Desde então, nenhum membro da família participa da administração do grupo.

Diretora é considerada superficial em seus documentários
Mesmo tendo recebido um Emmy — o principal prêmio da televisão americana — pelo documentário ‘The Armor of Light’ (‘A Armadura de Luz’, de 2015, acerca da relação entre a religião e a cultura armamentista nos EUA), Abigail não é exatamente uma realizadora consagrada no meio cinematográfico. Para muitos críticos, seus trabalhos, seja como diretora ou produtora, são parciais, possuem uma linguagem arrastada e trazem abordagens superficiais, além de manipular emocionalmente os personagens para comover o público.

‘Pray the Devil Back to Hell’ (‘Reze para o Diabo Voltar ao Inferno’, 2008),
por exemplo, sobre o papel pacificador das mulheres durante a guerra civil da Libéria, recebeu avaliações negativas por não mostrar o contexto sociopolítico do país, entregando para o espectador uma visão incompleta daquela realidade.

"Forks Over Knives" (de 2011, conhecido no Brasil como “Troque as Facas pelos Garfos”) peca por promover uma dieta 100% vegetariana sem apresentar dados científicos rigorosos. E mesmo o premiado ‘The Armor of Light’ foi acusado de omitir perspectivas diferentes das defendidas pela cineasta.

Esses comentários se estendem ao ativismo da “pessoa física” Abigail, considerado vazio, marqueteiro e desconectado do mundo real
Do alto de seu castelo, construído pela empresa que tanto denuncia, ela jamais fez o mínimo esforço para resolver internamente, em nível corporativo, os problemas de ordem social apontados pelos empregados da Disney.

E por mais que alegue já ter doado US$ 70 milhões (R$ 344,4 milhões) para a caridade nos últimos 30 anos, esse valor é bem inferior ao destinado por outros filantropos da indústria do entretenimento — o próprio Robert Iger, seu “rival, e rico há menos tempo, comanda uma fundação com ativos avaliados em mais de US$ 100 milhões (R$ 492 milhões).

Por trás da lacração de seus protestos performáticos, Abigail Disney parece ainda habitar um reino de fantasia paralelo, onde ignora a complexidade da vida contemporânea e não dá sinais de que está realmente comprometida com mudanças efetivas.

Omar Godoy, editor, Gazeta do Povo - IDEIAS