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domingo, 24 de setembro de 2017

As incontinências de um general

Sob as botas do general Olympio Mourão Filho, que marchou do IV Exército em Juiz de Fora ao Rio de Janeiro para arregimentar seus pares e desencadear o golpe, teve início o primeiro lampejo da ditadura que castigou o País por mais de duas décadas. Um ultraje às liberdades individuais, lancinante castigo aos perseguidos políticos e à democracia, esse período negro de nossa história deixou chagas irreparáveis na memória nacional. 

Mourão o conspirador -, de índole belicosa e temperamento irrefreável, era tido e havido como um comandante fanfarrão às vésperas da aposentadoria, que embora não levado à sério foi o primeiro a mobilizar tropas e setores militares para a derrubada da presidência naquele longínquo ano de 1964. No arco de tempo de lá para cá, a repetir a história como pilhéria, um outro general Mourão, esse burocrata das finanças em Brasília, também nos derradeiros dias antes de trocar a farda pelo pijama e seguir à reserva, decidiu soltar os demônios dias atrás durante uma fala em evento na maçonaria cujo teor deveria servir para, no mínimo, enquadrá-lo no crime de insubordinação, passível de severa punição. 

Não foi o que aconteceu. O Mourão da vez, general de quatro estrelas,[membro do Alto Comando do Exército]  que atende pelo registro de batismo como Antonio Hamilton Martins Mourão e tenta uma candidatura ao comando do Clube Militar, não mediu palavras e nem foi contido ao falar em intervenção pelas armas no caso de a Justiça “não solucionar o problema político”. Alegou contar com o apoio dos “companheiros do Alto Comando do Exército” que, nas suas palavras, compartilham da mesma ideia. Foi (não há dúvida) a maior e mais explícita ameaça à ordem constituída desde o fim dos tempos da tutela armada. Instituições civis e os poderes da República estavam claramente afrontados. 

O Judiciário submetido a uma chantagem: ou retirava os “elementos envolvidos em todos os ilícitos” ou, nos dizeres do general, “nós teremos que impor isso”. [pedir a um Poder que cumpra seu dever não caracteriza chantagem e sim o legítimo exercício de um direito.] Não existiu margem a interpretações distorcidas sobre as intenções do oficial que, sem qualquer cerimônia, mandou às favas o regulamento disciplinar segundo o qual é vetado a militares da ativa emitir manifestações de cunho político. A tibieza da reação das autoridades surpreendeu até os mais próximos convivas do Planalto. O Ministro da Defesa, Raul Jungmann, limitou-se a um pedido de explicações do chefe do general e deu o caso por encerrado, sem punição ao indisciplinado Mourão. 

A escalada de inquietação dos brasileiros – que correram às redes sociais para comentar o temor da ameaça – só cresceu. O pior ainda estava por vir. Foi o próprio comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, em programa televisivo, quem reiterou que não se cogitava punir ou repreender o colega de farda pelo ato. Ao contrário, Villas Bôas chegou a elogiar o subordinado: “O Mourão é um grande soldado, uma figura fantástica, um gauchão…”. Deu ainda endosso público às imprecações lançadas ao afirmar que, pela Constituição, as Forças Armadas podem ser empregadas sim para garantir a ordem, numa interpretação muito particular e distorcida do artigo que só aceita tal situação “sob a autoridade suprema do presidente da República”. [não é o caso presente, mas e se for o presidente da República o causador da quebra da ordem pública? 
As FF AA terão que cumprir uma ordem dada pelo próprio autor da desordem? cumprir uma ordem ilegal?]] O comandante do Exército lançou a senha para uma espécie de cordão de isolamento em torno de Mourão na caserna. A reportagem da ISTOÉ levantou as razões. Como relata nesta edição, o próprio Villas Bôas – além de vários outros generais tão drapejados de medalhas e comendas como ele – participou de uma reunião sigilosa dias antes que motivou o discurso na maçonaria. O general Augusto Heleno, que comandou as tropas no Haiti, não hesitou em dar publicamente aval “irrestrito” às ideias de Mourão que, diga-se de passagem, é reincidente e fez no passado duras críticas à classe política, tendo na ocasião perdido o Comando Militar do Sul. [eram tão procedentes, corretas e necessárias as críticas feitas a escarrada ex-presidente Dilma - destacavam a incompetência e corrupção reinante no seu governo - que enquanto o general apenas mudou de função a criticada foi devida e legalmente impedida e expulsa da presidência da República.] Fato recorrente, o flerte com regimes de exceção e ideias de ultradireita acontecem aqui e alhures em tempos de crise. A busca de uma alternativa radical, vendida como solução fácil e eficaz, embute decerto riscos desconhecidos e valores enganosos como o de imaginar que não há malversações ou desvios de qualquer natureza nesses sistemas. Nada mais falacioso. Na ditadura, o estrangulamento da informação, a censura sob diversas formas e o controle violento daqueles que se opõem ou denunciam o regime, escamoteiam as faltas gritantes cometidas debaixo dos panos. Sem liberdade e sob a direção das armas a sociedade perde o controle do próprio destino.


Fonte: Revista IstoÉ - Carlos José Marques, diretor editorial da Editora Três