A difícil equação
Exige-se uma política que siga padrões de moralidade pública. Exige-se do novo governo que se diferencie do anterior
A Lava-Jato
segue o seu inexorável curso. É como um cataclismo natural que se abate
sobre a classe política. As delações da Odebrecht, acompanhadas de suas
respectivas provas materiais, atingirão a base parlamentar do governo e
muito provavelmente muitos de seus ministros. Governar será ainda mais
difícil em um contexto de devastação da classe política.
Por outro lado, o país foi praticamente levado ao abismo pelos governos petistas, com o PIB caindo vertiginosamente, o desemprego alcançando 12 milhões de pessoas, o que equivale, na verdade, a 40 milhões, considerando quatro pessoas por família. As expectativas da população em geral são muito ruins. O impasse é grande. Urge, portanto, que o governo tome medidas para tirar o país deste buraco, o que pressupõe a aprovação da PEC do teto, a reforma da Previdência e a modernização da legislação trabalhista. Sem elas, o país continuará patinando no marasmo, senão na decadência.
O problema, porém, que se coloca consiste no timing da aprovação destas reformas, tendo como pano de fundo o avanço da Lava-Jato e o vazamento de suas investigações. As reformas devem ser priorizadas sob o risco de serem inviabilizadas. O que está em questão é o país. A difícil equação consiste precisamente nesta correlação. Quanto antes essas reformas forem aprovadas, menor impacto terá a Lava-Jato sobre elas. Quanto mais tardarem, mais a Lava-Jato poderá atingi-las, vindo, mesmo, a inviabilizá-las, dada a desordem política daí resultante.
Como se isto não bastasse, os fatos que levaram à demissão do agora ex-ministro Geddel expõem outro flanco delicado do governo ao expor as complexas relações entre moral e política, sobretudo à luz do cenário atual. Suas repercussões são tanto mais graves por acontecerem neste momento de devastação da classe política pelas operações da Lava-Jato, quando a sociedade civil clama por moralidade pública. A classe política e setores do governo parecem não ter compreendido que a sociedade brasileira já não mais admite uma política cínica, voltada para o atendimento particular de políticos e corporações dos mais diferentes tipos, sejam as do funcionalismo público em geral, sejam as das corporações patronais e sindicais.
Os interesses corporativos não podem se sobrepor aos do Brasil. O Judiciário e o Ministério Público, que tão relevantes serviços têm prestado ao Brasil, não podem, por exemplo, neste momento de crise aguda, exigir aumentos salariais e benefícios dos mais diferentes tipos enquanto outros não têm o que comer. Exige-se, hoje, uma política que siga padrões de moralidade pública. Exige-se do novo governo que ele se diferencie do anterior. Se isto não for feito, poderá ser fortalecida a percepção de que a mudança seria, apenas, mais do mesmo. O país poderia ser paralisado. O fosso entre a sociedade, de um lado, e a classe política e o governo, de outro, só tende a aumentar se as brigas da Corte e da classe política primarem sobre o bem coletivo. Difunde-se, na sociedade, a ideia de que o governo está se dissociando da sociedade.
Os políticos e as corporações, por sua vez, continuam em um jogo particular, pequeno, como se o precipício não estivesse logo ali. Há um ensimesmamento extremamente perigoso, pois nasce da falta de consciência da gravidade da crise. A nação clama por transformações e por um esforço coletivo, devendo a classe política e o governo tomarem esta vanguarda. Ora, esta liderança não está se exercendo a contento, os interesses menores prevalecendo sobre os maiores.
Mostra disso reside no projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados com o intuito de anistiar os crimes do caixa dois. A insensibilidade parlamentar é total. A sua falta de oportunidade é completa. A sociedade clama pela punição dos mais diferentes tipos de crime, enquanto a classe política procura preventivamente isentar-se desta responsabilidade.
Mesmo que devamos distinguir entre os crimes eleitorais e os de corrupção e propina, o momento não poderia ser mais inadequado. Aos olhos da sociedade, aparece esta iniciativa como uma anistia antecipada, uma precaução diante dos desdobramentos da Lava-Jato. [pedimos encarecidamente aos nossos dois leitores - ninguém e todo mundo - que não deixem de ler o POST imediatamente posterior a este.]
A classe política está brincando com fogo. O povo foi às ruas, em especial a classe média, para protestar contra um governo corrupto que se caracterizou por práticas ilícitas e imorais. O mensalão e o petrolão mostraram isto à saciedade.
As manifestações populares disseram não ao governo Dilma e indiretamente sim ao então vice-presidente Michel Temer, na expectativa de que este se mostrasse diferente do ponto de vista da moralidade. A sua biografia o respalda. Agora, poderão voltar essas manifestações enquanto expressão de uma aguda indignação moral, podendo, então, cair elas no colo do próprio presidente. Seria o pior dos cenários. Deve ele, portanto, dissociar-se publicamente deste projeto de lei de anistia, anunciando, desde já, que não o sancionará caso seja aprovado.
Acrescente-se, ainda, que essas manifestações, caso venham a ocorrer, teriam uma face nitidamente social, com os desempregados também delas participando. Expressariam toda a sua indignação e desamparo. Juízes também poderiam juntar-se a essas manifestações, protestando contra o projeto de lei da anistia, respaldados pelos movimentos sociais, como o MBL e o Vem para a Rua.
A demissão do ministro Geddel tira um pouco o fogo do caldeirão, porém este indigesto caldo de cultura permanece. O governo deverá avançar tanto nas reformas quanto moralmente, escutando a sociedade e apoiando-se nela. A pauta do governo não pode ser um apartamento na Bahia. O governo deverá mostrar mais claramente que o seu diferencial consiste em ser moralmente diferente do anterior, o que exige uma reformulação das práticas políticas correntes. Não há mais tergiversação possível. É o futuro do país que está em jogo.
Fonte: Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - O Globo
Por outro lado, o país foi praticamente levado ao abismo pelos governos petistas, com o PIB caindo vertiginosamente, o desemprego alcançando 12 milhões de pessoas, o que equivale, na verdade, a 40 milhões, considerando quatro pessoas por família. As expectativas da população em geral são muito ruins. O impasse é grande. Urge, portanto, que o governo tome medidas para tirar o país deste buraco, o que pressupõe a aprovação da PEC do teto, a reforma da Previdência e a modernização da legislação trabalhista. Sem elas, o país continuará patinando no marasmo, senão na decadência.
O problema, porém, que se coloca consiste no timing da aprovação destas reformas, tendo como pano de fundo o avanço da Lava-Jato e o vazamento de suas investigações. As reformas devem ser priorizadas sob o risco de serem inviabilizadas. O que está em questão é o país. A difícil equação consiste precisamente nesta correlação. Quanto antes essas reformas forem aprovadas, menor impacto terá a Lava-Jato sobre elas. Quanto mais tardarem, mais a Lava-Jato poderá atingi-las, vindo, mesmo, a inviabilizá-las, dada a desordem política daí resultante.
Como se isto não bastasse, os fatos que levaram à demissão do agora ex-ministro Geddel expõem outro flanco delicado do governo ao expor as complexas relações entre moral e política, sobretudo à luz do cenário atual. Suas repercussões são tanto mais graves por acontecerem neste momento de devastação da classe política pelas operações da Lava-Jato, quando a sociedade civil clama por moralidade pública. A classe política e setores do governo parecem não ter compreendido que a sociedade brasileira já não mais admite uma política cínica, voltada para o atendimento particular de políticos e corporações dos mais diferentes tipos, sejam as do funcionalismo público em geral, sejam as das corporações patronais e sindicais.
Os interesses corporativos não podem se sobrepor aos do Brasil. O Judiciário e o Ministério Público, que tão relevantes serviços têm prestado ao Brasil, não podem, por exemplo, neste momento de crise aguda, exigir aumentos salariais e benefícios dos mais diferentes tipos enquanto outros não têm o que comer. Exige-se, hoje, uma política que siga padrões de moralidade pública. Exige-se do novo governo que ele se diferencie do anterior. Se isto não for feito, poderá ser fortalecida a percepção de que a mudança seria, apenas, mais do mesmo. O país poderia ser paralisado. O fosso entre a sociedade, de um lado, e a classe política e o governo, de outro, só tende a aumentar se as brigas da Corte e da classe política primarem sobre o bem coletivo. Difunde-se, na sociedade, a ideia de que o governo está se dissociando da sociedade.
Os políticos e as corporações, por sua vez, continuam em um jogo particular, pequeno, como se o precipício não estivesse logo ali. Há um ensimesmamento extremamente perigoso, pois nasce da falta de consciência da gravidade da crise. A nação clama por transformações e por um esforço coletivo, devendo a classe política e o governo tomarem esta vanguarda. Ora, esta liderança não está se exercendo a contento, os interesses menores prevalecendo sobre os maiores.
Mostra disso reside no projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados com o intuito de anistiar os crimes do caixa dois. A insensibilidade parlamentar é total. A sua falta de oportunidade é completa. A sociedade clama pela punição dos mais diferentes tipos de crime, enquanto a classe política procura preventivamente isentar-se desta responsabilidade.
Mesmo que devamos distinguir entre os crimes eleitorais e os de corrupção e propina, o momento não poderia ser mais inadequado. Aos olhos da sociedade, aparece esta iniciativa como uma anistia antecipada, uma precaução diante dos desdobramentos da Lava-Jato. [pedimos encarecidamente aos nossos dois leitores - ninguém e todo mundo - que não deixem de ler o POST imediatamente posterior a este.]
A classe política está brincando com fogo. O povo foi às ruas, em especial a classe média, para protestar contra um governo corrupto que se caracterizou por práticas ilícitas e imorais. O mensalão e o petrolão mostraram isto à saciedade.
As manifestações populares disseram não ao governo Dilma e indiretamente sim ao então vice-presidente Michel Temer, na expectativa de que este se mostrasse diferente do ponto de vista da moralidade. A sua biografia o respalda. Agora, poderão voltar essas manifestações enquanto expressão de uma aguda indignação moral, podendo, então, cair elas no colo do próprio presidente. Seria o pior dos cenários. Deve ele, portanto, dissociar-se publicamente deste projeto de lei de anistia, anunciando, desde já, que não o sancionará caso seja aprovado.
Acrescente-se, ainda, que essas manifestações, caso venham a ocorrer, teriam uma face nitidamente social, com os desempregados também delas participando. Expressariam toda a sua indignação e desamparo. Juízes também poderiam juntar-se a essas manifestações, protestando contra o projeto de lei da anistia, respaldados pelos movimentos sociais, como o MBL e o Vem para a Rua.
A demissão do ministro Geddel tira um pouco o fogo do caldeirão, porém este indigesto caldo de cultura permanece. O governo deverá avançar tanto nas reformas quanto moralmente, escutando a sociedade e apoiando-se nela. A pauta do governo não pode ser um apartamento na Bahia. O governo deverá mostrar mais claramente que o seu diferencial consiste em ser moralmente diferente do anterior, o que exige uma reformulação das práticas políticas correntes. Não há mais tergiversação possível. É o futuro do país que está em jogo.
Fonte: Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - O Globo