Construtora dos prédios que desabaram é criminosa, como a Máfia e a Camorra
O desabamento de dois prédios na Comunidade da Muzema, no Rio, começou,
realmente, com um imprevisto: o índice pluviométrico deste início de
abril surpreenderia até o gênio da música popular Antônio Carlos
Brasileiro de Almeida Jobim, que registrou, em antológica gravação com
Elis Regina, “as águas de março fechando o verão”. Mas estas jamais
poderiam ser usadas como pretexto pelo prefeito Marcelo Crivella.
Qualquer pré-adolescente em qualquer região do Brasil hoje é avisado por
um simples aplicativo no celular sobre vinda de chuva com muita
antecedência. A falta dessa informação na ex-Cidade Maravilhosa é um
sinal absurdo de incapacidade gerencial.
No entanto, por uma questão de justiça, não se pode negar que o problema
dos deslizamentos de barrancos nos morros que cercam o Rio, origem da
tragédia e da fama de sua deslumbrante paisagem urbana na harmonia de
mar e montanha, vem de priscas eras e do longevo abandono da cidade – e
do País – pelo Estado corrupto, estroina e imprevidente. Começa, de
verdade, na invasão da então capital federal pelos soldados da República
chegados de Canudos, na Bahia, aonde foram massacrar os desvalidos do
sertão, que, fiéis ao fanático cearense Antônio Vicente Maciel, o
Conselheiro, foram confundidos com revoltosos monarquistas, assim como
hoje quem apoia o governo federal é chamado de fascista e quem a este
“resiste”, de comunista. Sem lar nem dinheiro, eles se instalaram nas
encostas que descem até perto da praia, por falta de condições
financeiras para ter habitação decente em local seguro.
A desgraça dos soterrados dos desabamentos resulta, em primeiro lugar,
do ominoso déficit habitacional brasileiro neste país do faz de conta.
Os mesmos políticos que garantem o direito de todos à moradia roubam os
cofres de todos e constroem as próprias fortunas sacando do erário
verbas públicas que poderiam financiar casas dignas para cidadãos
decentes, que pagam escorchantes impostos para tanto.
O segundo capítulo dessa tragédia carioca, com correspondente relevante
em várias metrópoles, ergue-se sobre alicerces em outra ignomínia
praticada pelo Estado brasileiro - União, unidades federativas e
municípios –, qual seja, o absoluto abandono desses mesmos pobres sem
moradia à anomia (ausência de governo) generalizada. Ao subir o morro
para construir ou comprar seu barraco, o pobre assume a condição de ter
negados água encanada, esgoto, rede elétrica e, sobretudo, o direito de
viver em paz honestamente, como pretendia. Sem o conforto da
civilização, vivida abaixo, ao alcance de seus olhos, no “asfalto”,
conjunto de bairros com direito aos confortos e à proteção do Estado
contra os fora da lei.
O único direito a que o “favelado” tem acesso é o de ter seu território
sido batizado de “comunidade”, em vez de “favela” (denominação de um
arbusto seco da paisagem sertaneja de que voltou, depois de reprimir o
levante do beato). Como se isso bastasse. Seja qual for o nome, mais de
um século depois do conflito ele não apenas tem de conviver com
criminosos perigosos que administram o tráfico de entorpecentes e de
armas, como também de deles depender para levar a mulher à maternidade, o
filho ao hospital e outras rotinas que os gestores públicos lhe negam.
Antes de Crivella assumir a parte que lhe cabe no latifúndio desse erro,
convém admitir que a atividade que vende “edifícios de areia”, como
definiu um vizinho diante da tragédia da Muzema, o antecede. As tais
milícias não surgiram para fazer o bem, como declarou o ministro da
Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Mas, sim, como uma atividade mafiosa,
criada a pretexto de combater o traficante inimigo. Quem entende sabe.
Caso do juiz Walter Maierovitch, que as definiu como sendo “organizações
criminosas de matriz mafiosa, que difundem, como a Cosa Nostra, o medo
para obter controles de territórios e social.”
A atividade adquiriu, assim, força nos Poderes da República. Segundo
Maierovitch, conhecedor da Camorra italiana, “quem tem controle social
influencia nas eleições. Como frisou o escritor e jornalista siciliano
Gaetano Sciascia, ao difundir o terror essas organizações impõem à
comunidade dominada a ‘solidariedade pelo medo’. Isso ocorre porque não
confiam nas autoridades”. Ou seja, o prefeito, o governador do Estado,
os presidentes da Assembleia Legislativa (Alerj) e da República não são
os únicos a serem apontados como responsáveis – culpados seria exagerado
– pela tragédia, que nada tem de acidental.
Crivella defendeu-se apelando para o registro das autuações e da
interdição dos prédios que ruíram, como se a prefeitura nada tivesse que
ver com o fato de eles terem sido construídos. Wilson Witzel passou o
pano, como se diz na gíria, sobre a própria gestão, esquecendo a inércia
de suas polícias na repressão às milícias, que cobram “proteção”,
lucram com caça-níqueis proibidos e vendem água, gás e gambiarras de
eletricidade e TV por assinatura. E ainda concorrem com o mercado
imobiliário construindo edifícios a preços “módicos” sem “luxos” como
habite-se e segurança.
Isso acontece com ajuda da dita, e nunca feita, “justiça”. Segundo o
UOL, o embargo à obra de outro edifício na Muzema, Figueiras de
Itanhangá, pedido pela Procuradoria-Geral do município, teve liminar
negada pela 20.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio, em processo
relatado pela juíza Marília de Castro Neves, autora, em 2017, de
polêmica mensagem nas redes sociais em que descreveu a vereadora
Marielle Franco como “engajada com bandidos” e “eleita pelo Comando
Vermelho”.
Bolsonaro calou sobre a tragédia. Carlos, seu filho e vereador no Rio,
empregou Márcio Gerbatim, suspeito de ligações com milícias e ex-marido
da mulher de Fabrício Queiroz, de quem o próprio presidente disse saber
que “fazia rolo” e que foi assessor de outro filho, o senador Flávio, na
Alerj.