As 'trombadas' entre os dois poderes escalaram em casos como os do marco temporal e da maconha. Eles põem à prova a 'separação harmoniosa' de atribuições
O Supremo Tribunal Federal retomou na última semana o debate sobre a constitucionalidade ou não de se estabelecer um marco temporal para balizar os processos de delimitações de terras indígenas no país, um tema de grande repercussão que opõe os povos originários e representantes do agronegócio.
A Corte discute a teoria jurídica segundo a qual só poderá ser demarcado o território que era ocupado pelos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Até o fechamento desta edição, havia quatro votos contrários e dois favoráveis à tese, que tem ampla relevância também porque ganhou do STF o caráter de repercussão geral, ou seja, o que for decidido pelos ministros passa a ser regra para a questão, o que lhe dá força de lei. E nesse desdobramento reside um outro problema: o choque com o Congresso.
O julgamento no Supremo ocorre no momento em que o Parlamento também discute o tema.
O Senado aprecia um projeto de lei aprovado em junho na Câmara que não só estabelece o marco temporal como parâmetro, como cria novas restrições e ainda avança sobre direitos adquiridos pelos indígenas ao prever que terras já demarcadas se enquadrem à nova regra.
Uma semana antes de os ministros do STF voltarem a se debruçar sobre o assunto, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária deu parecer favorável à proposta, que agora só precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para ir a plenário.
Se as duas iniciativas chegarem a definições conflitantes sobre o assunto, o que é provável, um novo impasse terá se estabelecido — e, com ele, a discussão sobre quem dará a palavra final.
O descompasso em torno do marco temporal não foi o único nos últimos dias. Na semana anterior, a Corte ficou a um voto de ter maioria para fixar critérios para a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, no que foi visto por muitos parlamentares como uma interferência no Legislativo. Na mesma semana, o STF apontou omissão do Congresso para estabelecer, por unanimidade, um prazo para que seja readequada a distribuição de cadeiras de deputados na Câmara com base no Censo de 2022 — o formato atual usa dados de 1993.
A medida tem alto impacto porque sete estados devem ganhar vagas e sete devem perder. Além disso, o Supremo deve colocar na pauta nos próximos dias a descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gestação e a concessão de licença-maternidade a mulheres não gestantes em união homoafetiva, outros temas que deverão criar atritos com os deputados e senadores.
O número de “trombadas” entre os dois poderes da República escalou nos últimos dias, mas a troca de cotoveladas já ocorre há algum tempo.
Em 2012, foi a Corte que incluiu a possibilidade de grávidas de fetos anencéfalos fazerem aborto sem serem criminalizadas, firmando uma das três exceções à proibição da prática no Brasil — as outras são gravidez decorrente de estupro e risco de morte da mãe.
Um ano antes, havia equiparado as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo a união homoafetiva como núcleo familiar.
Outras decisões atingiram diretamente os parlamentares. Em 2015, em meio à Lava-Jato, proibiu as doações eleitorais por empresas. Em 2011, vetou a contratação de parentes de até terceiro grau para cargos de confiança.
A nova onda no Supremo gerou reação no Congresso, com manifestação em defesa da separação dos poderes e da prerrogativa parlamentar de criar leis.
No julgamento sobre a maconha, o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), apontou “equívoco grave” do STF e fez questão de reafirmar, em artigo, o papel de cada poder. “Negar que a Constituição conferiu ao Poder Legislativo a opção de debater a opção de política criminal no tocante ao tráfico de drogas, recusando o papel dos legisladores como representantes da vontade popular, contribui para o definhamento da própria democracia”, afirmou.
Senadores também voltaram a falar sobre a possibilidade de dar andamento a matérias que afetam os ministros da Corte. Pela Casa tramitam propostas para limitar os poderes de decisões monocráticas e que estabelecem mandatos para ministros do STF. “Precisamos democratizar mais o Supremo”, diz o senador Angelo Coronel (PSD-BA), autor da proposta de dar o poder de indicação de ministros da Corte, hoje exclusivo do presidente da República, também aos congressistas.
Especialistas apontam que um maior ou menor grau de “ativismo” do Judiciário está diretamente ligado ao momento pelo qual o país passa. “O Judiciário também responde ao ritmo em que é acionado, algo que vem ocorrendo com frequência inédita por aqui”, afirma Álvaro Palma de Jorge, professor de direito da FGV.
Em 2022, o Tribunal Superior Eleitoral precisou ter uma atuação muito mais incisiva do que nos anos anteriores, diante das ameaças ao sistema de votação. Além disso, vale lembrar, o protagonismo do STF não é uma exclusividade brasileira. Foi a Suprema Corte dos Estados Unidos, por exemplo, que estabeleceu na década de 50 que as escolas não poderiam segregar racialmente, ou que os direitos de um cidadão deveriam ser lidos no momento da prisão, ainda que isso não estivesse expresso na Constituição do país.
No Brasil, parte do aumento das tensões está no protagonismo dado ao Judiciário pela Carta de 1988. Ao mesmo tempo que restabeleceu, após 21 anos de ditadura, a “separação harmoniosa” entre os três poderes, a Carta permitiu que outros entes, além do presidente da República, pudessem acionar o Supremo para dirimir questões constitucionais — essas decisões acabam balizando a criação de novas regras.
A partir de 1988, governadores, Assembleias Legislativas, entidades como a OAB e partidos políticos também foram autorizados a acionar a Corte.
A despeito dessa “brecha” legal, há juristas que pedem ao STF mais cautela. “O Supremo deve atuar quando acionado, mas não é pelo fato de não ter órgão superior para rever suas decisões que a Corte pode extravasar limites constitucionais”, defende Marco Aurélio Mello, ex-ministro do STF.
O estranhamento cresceu nos últimos tempos também por causa do perfil da presidente do STF, Rosa Weber.
A um mês de se aposentar, ela tem dado tração à sua agenda progressista. No caso da maconha, com o pedido de vista de André Mendonça, fez questão de antecipar o voto para marcar posição.
Deve fazer o mesmo em relação ao aborto, ação da qual não abriu mão da relatoria nem mesmo após assumir a presidência da Corte.
Como boa parte das tensões vem do maior progressismo da formação do Supremo em contraposição ao conservadorismo do Congresso, a tendência é de que isso não se dissipe rapidamente — o próximo presidente será Luís Roberto Barroso, que também tem um posicionamento mais liberal na agenda de costumes.
Em meio à polêmica sobre a maconha, ele defendeu a postura do STF ao lembrar que juízes precisam de regras claras para julgar jovens presos com a droga. “Em muitas partes do mundo, e não só no Brasil, isso acaba sendo decidido no Judiciário. Não há aqui mínima invasão da esfera legislativa”, disse. Tendo de um lado um Congresso mais poderoso do que nunca e do outro um STF que não abre mão de seu atual protagonismo, novos embates certamente vão ocorrer nessa disputa entre poderes.
Publicado em VEJA, edição nº 2857. de 1º de setembro de 2023