Ano após ano, a infame marca dos 100 primeiros
policiais mortos parece ser atingida cada vez mais cedo
No final
da década de 1990, a violência urbana no Rio de Janeiro parecia ter chegado ao
capítulo mais sombrio de uma longa história de recrudescimento do confronto
entre as forças policiais do Estado e os criminosos, notadamente os traficantes
de drogas.
A
população, absolutamente indefesa, vivia como podia em meio ao desamparo, ao
medo e ao silêncio a que estava submetida. Tanto a Polícia Militar (PM) como a
Polícia Civil operavam quase sempre um passo atrás dos bandidos e em flagrante
desigualdade de condições materiais. Aquela foi a década em que os traficantes
do Rio passaram a impor seu poder paralelo e sua política de terror por meio
das armas de guerra.
Na
sociedade civil, aquela situação caótica, que não recebia do poder público as
devidas respostas, inspirou a criação de uma série de Organizações Não
Governamentais (ONGs), algumas delas com atuação relevante até hoje, como é o
caso do Disque-Denúncia. Àquela
época, tida como o auge da crise da violência urbana no Estado, morria um
policial a cada cinco dias, de acordo com o Mapeamento da Vitimização de
Policiais no Rio de Janeiro, um estudo feito pelo Instituto de Estudos da
Religião (Iser) em parceria com a Unesco, em 1997.
Pois bem.
Vinte anos depois, morre um policial a cada dois dias no Rio de Janeiro. Em
2017, 100 policiais militares já foram assassinados, um terço deles na Baixada
Fluminense, área do Estado que engloba os municípios de Duque de Caxias, Nova
Iguaçu, Nilópolis, São João de Meriti, Belford Roxo, Queimados e Mesquita. Dos
29 casos ocorridos na região, 15 deles (51%) já foram elucidados pela Delegacia
de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF). E destes, dez foram execuções
sumárias.
O segundo
sargento Fábio José Cavalcante e Sá, morto com 11 tiros na manhã do último
sábado, foi a centésima baixa nas forças policiais do Estado apenas em 2017.
Ano após ano, a infame marca dos 100 primeiros policiais mortos parece ser
atingida cada vez mais cedo. As mortes
de policiais já seriam suficientemente graves e sentidas caso ocorressem nos
limites do confronto diário que marca a profissão, sobretudo em um Estado
crítico por sua posição “estratégica” no tráfico internacional de drogas como é
o Rio de Janeiro. Mas muitas dessas mortes ocorreram quando os policiais
estavam fora de serviço, seja em dias de folga, seja realizando os chamados
“bicos”, serviços de segurança particular para complementar sua baixa
remuneração.
Em nota
oficial após a morte do sargento Cavalcante, o governador do Rio de Janeiro, Luiz
Fernando Pezão, comparou a terroristas os bandidos que, portando fuzis de
assalto, ceifam a vida dos agentes do Estado. De fato, o modo sorrateiro dos
ataques, muitas vezes impossibilitando a defesa das vítimas, é comparável a
atos de terrorismo. A própria atuação despreocupada e ostensiva do banditismo
fluminense configura uma clara afronta à própria noção clássica de Estado como
a entidade detentora do monopólio do uso da violência.
Diante do
descalabro que se instalou no Rio, as reações, em geral, soam previsíveis e
conformadas, tanto as do governo do Estado como as dos que a ele se opõem. Não
raro, os partidos de oposição têm recorrido ao rasteiro debate
político-ideológico para tratar da questão da violência urbana, deixando em
segundo plano a abordagem propositiva que os qualificaria como uma oposição
responsável. Desprotegida
sob um céu de chumbo e uma inócua guerra retórica entre governo e oposição está
a população fluminense, cada vez mais acuada. Há muito a população não confia
nas forças policiais.
E tem carradas de razões para tal. Agora, é a própria
polícia que não confia em si mesma. “Parece que a gente está numa fila
esperando a nossa vez”, disse ao Estado a cabo Louzada, da PM do Rio, única
mulher a participar da ocupação do Complexo do Alemão.
Passa da
hora de o Estado assumir suas responsabilidades, começando pela reforma da
polícia, e acabar com essa sensação de desalento.