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segunda-feira, 2 de março de 2020

QUANDO SÓ SE FAZ POLÍTICA - Percival Puggina

O começo foi muito, muito difícil. Cansativo, mesmo. Exigia dedicação exclusiva e intensa. Não era moleza fazer política andando de ônibus, em cima de um Lada com pneus carecas, distribuir panfletos de dia e pichar muros à noite, vender distintivo e bandeirinha para arrumar dinheiro, fazer reunião para programar reunião para organizar reunião, imprimir propaganda em mimeógrafo, infiltrar-se nos seminários, nos jornais, nas escolas e nas universidades, conquistar os sindicatos, cativar um músico aqui, um escritor ali. Difícil!

 Havia padres que cuidavam das paróquias e rezavam missa e padres que faziam política. Professores que davam aula e professores que faziam política. Jornalistas que relatavam fatos e jornalistas que faziam política. Juizes e promotores que operavam a justiça e outros que faziam política. Em quaisquer organizações da sociedade havia os que faziam as coisas acontecer e outros que só faziam política. Com tanta gente fazendo apenas política era inevitável que ela acabasse feita. De fato, ficou tão bem feita que o partido chegou ao poder. E aí, para espanto geral, deixou o governo de lado e continuou fazendo política.

Os companheiros trocaram os ônibus por aeronaves, abandonaram os Ladas e acorreram às concessionárias de veículos importados do maldito mundo capitalista. Substituíram os mimeógrafos pela policromia das máquinas rotativas e o papel reciclado pelo mais primoroso couché. Montaram uma estrutura capaz de cobrir o Brasil com propaganda em apenas vinte e quatro horas. E dê-lhe política. E veio o mensalão, e veio o petrolão. Fazer tanta política exigia muito dinheiro, exigia comprar os adversários.

De fato, olhando aquilo, os adversários chegaram à conclusão de que a política consistia em fazer política e que o sucesso dependia de só fazer política. E aderiram à fórmula: que se danem o país, o governo, as necessidades das pessoas, o bem comum. O negócio é fazer política! O país ficou muito mal, mas a política andava bem, pagava bem e – melhor de tudo – assegurava sucessivos mandatos.

Observando o comportamento do Congresso Nacional em relação a um presidente que se elegeu sem dinheiro e sem tempo de TV, que quer governar, que escolheu peritos nas respectivas áreas para compor o governo, pilotar a administração e pôr o país nos trilhos, ocorre-me formular a máxima que registro para a ponderação dos leitores: 
na política nacional se pode contrariar o interesse de todos, contanto que não se contrarie interesse de quem faz política. Aí a casa cai.

Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.



segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Esqueletos no armário - Fernando Gabeira

Correndo de praia em praia, seguindo a mancha de óleo no Nordeste, tive uma noite livre para pensar na política nacional.  Dizem que é nova política. Não sei se tenho condições de entendê-la. Mas o exame da política de sempre é o critério que tenho para analisar esses fatos. Na minha tosca enciclopédia, dois verbetes dariam conta da fúria de Bolsonaro contra um ciclista e a divisão desse estranho partido que é o PSL: esqueletos no armário e racha, entendido aqui como a cisão num grupo partidário.

Esqueletos no armário podem ser cadáveres reais ou mesmo episódios que governos ou partidos querem ocultar porque a transparência, nesse caso, é indesejável. Fabrício Queiroz é um esqueleto no armário. Há muitas formas de tratar disso. Bolsonaro parece ainda inexperiente no assunto. Ao gritar que Queiroz estava com a mãe do ciclista, ele apenas usou a pior tática: chacoalhar os ossos e chamar a atenção de todos para o esqueleto rangendo contra a madeira.
Esqueletos no armário são corrosivos. Os ultrafiéis não se importam, talvez nem acreditem que essas coisas aconteçam nos bastidores. Há um grupo que simplesmente aceita, com o argumento de que o objetivo é maior e que essas coisas acontecem mesmo em todos os partidos.

Mas essa concordância entra em colapso quando o chamado objetivo maior não se realiza. Manter os esqueletos silenciosos no armário é uma tarefa difícil também a longo prazo. Bolsonaro, diga-se a seu favor, não é dos mais brilhantes na tarefa.
Outro tema que me interessou foi a história de um possível racha no PSL. É o partido de Bolsonaro, e ele disse que é preciso esquecê-lo. Disse ainda que o presidente do partido estava queimado para caramba. É um partido que movimenta milhões. E brigas partidárias, apesar de sua natureza diferente, lembram separações conjugais: quem fica com o quê?

No nosso movimento estudantil, os rachas, quando aconteciam, sempre desfechavam uma disputa em torno do mimeógrafo. Bem mais poético que agora. Não há grandes divergências ideológicas no PSL. Não há correntes de pensamento definidas. São indivíduos e suas carreiras políticas. Se houvesse espaço, avançaria em outro verbete da tosca enciclopédia: as bancadas eleitas pelo populismo. São heterogêneas, compõem-se de gente que expressa proximidade com o líder, repete um ou outro dos seus slogans, e pronto. Imagine o que acontece quando se injetam milhões de reais num agrupamento com essa consistência política? [por enquanto, não há resposta para essa política;
sabemos apenas que quando se injeta alguns milhares de reais, o resultado é quase 60.000.000 de votos.] Não se trata mais de discutir quem fica com o quê, depois de uma divergência ideológica.  Nesse caso, o dinheiro é a própria razão do conflito. Dinheiro público, pois acabou o financiamento privado.

Nos partidos chamados nanicos, o fundo oficial é uma espécie de vaquinha que alimenta os dirigentes, consegue mantê-los com uma renda pessoal. Mas quando a soma é gigantesca, em R$ 350 milhões, como no PSL, é certo que vão se dilacerar para decidir quem gasta o quê, campanhas vão florescer; outras, submergir. Sempre tive essa intuição sobre a briga atual do PSL. Temia, no entanto, supersimplificar. Afinal, é possível que tenham ideias. Ganhei um pouco de coragem para enunciá-la porque no momento em que perguntaram a Bolsonaro qual era o problema do PSL, ele respondeu: é o tesoureiro.

No tempo em que, diante da complexidade de governar o país, o problema do partido dominante é o tesoureiro, meu tosco arsenal carece de atualização. Faltam categorias. Esperava que o líder populista entrasse em conflito com sua base pantanosa. Pensei em infidelidade partidária, em choque de egos.  O tesoureiro me escapou. Tesoureiros de partidos costumavam ser presos, em tempos de financiamento privado. Agora, são o objeto de desejo. A nova política não se cansa de me surpreender. Embora se diga defensora de valores tradicionais e prometa uma volta ao passado num mundo que se transformou profundamente, o seu tema central, no fundo, é o mais prosaico: dinheiro. Aliás, ele é também a causa do ruidoso esqueleto no armário. Não apenas por ofensas ao ciclista. Os ossos rangem estrepitosamente desde o momento em que Toffoli proibiu a cooperação entre receita e órgãos investigativos. É uma espécie de grito: há alguma coisa errada entre nós; logo, suprimam-se as investigações.

Artigo publicado no jornal O Globo em 14/10/2019

Blog do Gabeira - Fernando Gabeira, jornalista