O racismo de segundo grau é coisa mais complicada. Embora seus cultivadores se digam inimigos da discriminação e aliados de todos os grupos que lutam pelos direitos das minorias, não compreendem — e, no fundo, não aceitam — que um negro possa ser bem-sucedido em sua profissão
Depois do insuportável “Quando Nietzsche Chorou”, temos de escrever o formidável “Quando Roberto Barroso chorou”.
Sim, ele foi às lágrimas nesta
quinta-feira durante sessão do Supremo. Não chegou a se debulhar porque
seria um tanto exagerado. Deixou a sala antes. Mas permitiu que
percebessem: ali estava um homem que sofria. E obteve a solidariedade
de alguns de seus pares.
Antes de entrar no mérito da coisa, uma
consideração importante. O doutor é uma espécie de coquetel de todas as
militâncias politicamente corretas ou de esquerda… É, por exemplo, um
entusiasta da política de cotas raciais, à qual me oponho de modo
determinado. Acontece que Barroso é um esquerdista. E um sujeito de
esquerda só entende representante de minoria que carregue a bandeira da
causa.
Não basta ser negro; é preciso ser
“racialista”; não basta ser mulher, é preciso ser feminista; não basta
ser gay; é preciso pertencer a alguma hierarquia LGBTXYZ. E, por óbvio,
Barroso já aprontou algumas enormidades no STF. Trato do assunto mais
adiante. O que me importa agora é outra coisa.
Na quarta-feira, dia 07, o ministro
resolveu discursar na homenagem feita a Joaquim Barbosa, ex-integrante
da corte, cujo retrato passou a integrar a galeria de ex-presidentes.
Vejam como ele se dirigiu ao homenageado do dia:
“A universidade (UERJ) teve o
prazer e a honra de receber um professor negro, um negro de primeira
linha vindo de um doutorado em Paris”.
Não-virtuosa
Não há jeito de essa fala ser virtuosa. Comece-se pelo básico: ninguém diria ser Barroso um branco de primeira linha, certo? Ao se referir ao ex-ministro naqueles termos, uma inferência é obrigatória: “Os negros costumam ser de segunda linha; de vez em quando aparece um de primeira…”
Não há jeito de essa fala ser virtuosa. Comece-se pelo básico: ninguém diria ser Barroso um branco de primeira linha, certo? Ao se referir ao ex-ministro naqueles termos, uma inferência é obrigatória: “Os negros costumam ser de segunda linha; de vez em quando aparece um de primeira…”
Meu querido amigo Heraldo Pereira é um
dos mais destacados jornalistas do país. Trabalha na TV Globo. Foi
tachado pelo ex-jornalista Paulo Henrique Amorim de “negro de alma
branca”! Nesse caso, a intenção nem era elogiar — como Barroso julgou
que estivesse a fazer. O que o agressor pretendia era atribuir-lhe
pechas e máculas. A síntese é mais ou menos esta: Heraldo só seria
tolerado na emissora porque fazia o jogo da casa, o que o tornaria um
negro indigno da própria cor. Parece não ter passado pela cabeça do
agressor que Heraldo, preto ou branco, tem talento.
Racismo de Segundo Grau
Criei, à época, um termo para designar casos assim: “Racismo de Segundo Grau”. Num post do dia 23 de fevereiro de 2012, escrevi o seguinte a respeito:
Criei, à época, um termo para designar casos assim: “Racismo de Segundo Grau”. Num post do dia 23 de fevereiro de 2012, escrevi o seguinte a respeito:
O racismo bronco pode ser
enfrentado com clareza porque visível. Os estúpidos, os bucéfalos, que
saem por aí a vociferar o seu ódio contra negros, por exemplo, praticam o
que costumo chamar de “racismo de primeiro grau”. São crus, desprovidos
de qualquer ambição intelectual, mal escondem o seu recalque: ou acham
que um negro bem-sucedido está a ocupar um lugar que lhes caberia por
direito natural ou entendem que a presença do “outro” ameaça o seu
próprio status. Merecem ser duramente enfrentados nas ruas, nas escolas,
nas empresas, nos tribunais. Não, não acredito que o caminho sejam as
cotas, mas, reitero, não entro nesse mérito agora.
Já o racismo de segundo grau
é coisa mais complicada. Embora seus cultivadores se digam inimigos da
discriminação e aliados de todos os grupos que lutam pelos direitos das
minorias, não compreendem — e, no fundo, não aceitam — que um negro
possa ser bem-sucedido em sua profissão A MENOS QUE CARREGUE AS MESMAS
BANDEIRAS QUE ELES DIZEM CARREGAR! Eis, então, que um
profissional com as qualidades de Heraldo Pereira os ofende gravemente.
Sim, ele é negro. Sim, ele tem “uma origem humilde”. Ocorre que ele
chega ao topo de sua profissão mesmo no país em que há muitos racistas
broncos e em que a maior discriminação ainda é a de origem social. E
chegou lá sem fazer o gênero do oprimido reivindicador, sem achar que o
lugar lhe pertencia por justiça histórica, porque, afinal, seus avós
teriam sido escravos dos avós dos brancos com os quais ele competiu ou
que a luta de classes lhe roubou oportunidades.
Sabem o que queriam os
“racistas de segundo grau”, essas almas caridosas que adoram defender
minorias? Que Heraldo Pereira estivesse na Globo, sim, mas com o
esfregão na mão e muito discurso contra o racismo na cabeça. Aí, então,
eles poderiam dizer: “Vejam, senhores!, aquele negro! Por que ele não
está na bancada do Jornal Nacional?” Ocorre que Heraldo ESTÁ na bancada
do Jornal Nacional. E sem pedir licença a ninguém. Enquanto alguns
negros, brancos, amarelos ou vermelhos choramingavam, o jornalista
Heraldo Pereira foi estudar direito na Universidade de Brasília.
Enquanto alguns se encarregavam de medir o seu “teor de negritude
militante”, ele foi fazer mestrado — a sua dissertação: “Direito
Constitucional: Desvios do Constituinte Derivado na Alteração da Norma
Constitucional”.
Quando se classifica alguém
como Heraldo de “negro de alma branca” — e já ouvi cretinos a dizer a
mesma coisa sobre Barack Obama porque também insatisfeitos com a sua
pouca disposição para o ódio racial —, o que se pretende, na verdade, é
lhe impor uma pauta. Atenção para isto:
– por ser negro, ele seria menos livre do que um branco, por exemplo, porque estaria obrigado a aderir a uma determinada pauta;
– por ser negro, ele teria
menos escolhas, estando condenado a fazer um determinado discurso que os
“donos das causas” consideram progressista;
– ao nascer, portanto, negro ele já nasceria escravo de uma causa.
(…)
Aos dias de hoje
Ao se desculpar nesta quinta, o homem se emocionou, chorou, deixou o tribunal, voltou. E a maioria dos seus colegas se mostrou solidária. Admitiu ser “preciso enfrentar o racismo que se esconde em nosso inconsciente.” E emendou: “Eu, portanto, gostaria de pedir desculpas às pessoas a quem possa ter ofendido ou magoado com essa frase infeliz. Gostaria de pedir desculpa sobretudo se, involuntária e inconscientemente tiver forçado um estereótipo racista que passei a vida tentando combater e derrotar”.
Ao se desculpar nesta quinta, o homem se emocionou, chorou, deixou o tribunal, voltou. E a maioria dos seus colegas se mostrou solidária. Admitiu ser “preciso enfrentar o racismo que se esconde em nosso inconsciente.” E emendou: “Eu, portanto, gostaria de pedir desculpas às pessoas a quem possa ter ofendido ou magoado com essa frase infeliz. Gostaria de pedir desculpa sobretudo se, involuntária e inconscientemente tiver forçado um estereótipo racista que passei a vida tentando combater e derrotar”.
Não serei eu a censurar Barroso por se
desculpar. Meu ponto é outro: não sei se acredito nele. Explico: analiso
a atuação do ministro e vejo nela o voto sempre militante, o
homem-causa, o prosélito de causas influentes em trânsito.
Ok, ele chorou e se desculpou com
Barbosa, com quem já andei ás turras; ele me atacou (fica para outra
hora). Agora espero que chore:
– porque usou a simples concessão de um habeas corpus para “legalizar” o aborto até o terceiro mês de gestação, fraudando, assim, o Código Penal e usurpando uma tarefa legislativa;
– porque usou expediente parecido para mudar as regras do foro especial por prerrogativa de função, matéria devidamente tratada na Constituição e que só pode ser mudada por emenda parlamentar;
– porque promoveu, ainda que à socapa, a Ação Direita de Inconstitucionalidade que acabou tornando ilegal a doação de pessoas jurídicas a campanhas. O texto que foi a votação era de sua autoria, quando advogava.
– porque usou a simples concessão de um habeas corpus para “legalizar” o aborto até o terceiro mês de gestação, fraudando, assim, o Código Penal e usurpando uma tarefa legislativa;
– porque usou expediente parecido para mudar as regras do foro especial por prerrogativa de função, matéria devidamente tratada na Constituição e que só pode ser mudada por emenda parlamentar;
– porque promoveu, ainda que à socapa, a Ação Direita de Inconstitucionalidade que acabou tornando ilegal a doação de pessoas jurídicas a campanhas. O texto que foi a votação era de sua autoria, quando advogava.
Para me convencer, Barroso terá de chorar muito mais.