O Brasil mostrou diante do mundo inteiro o relacionamento doentio que existe entre governos, construtoras, bancos estatais e políticos na hora de construir qualquer obra pública
Publicado na edição impressa de VEJA
Está garantido que vai errar, sempre, quem disser que “o grande problema do Brasil” é este ou aquele, por mais tenebroso que seja. O Brasil, sendo o Brasil, não trabalha com essa mercadoria – “o grande problema”. Não há por aqui a possibilidade prática de separar uma calamidade bem definida ou mesmo duas, três ou meia dúzia que consigam ficar claramente acima de todas as demais em matéria de perversidade em estado puro.
São tantas, e de índole tão ruim, que nossos melhores esforços para escolher uma prioridade capaz de inserir o Brasil no mundo desenvolvido, caso existissem, dariam bem pouco resultado no mundo das coisas reais. Bons tempos os da saúva, por exemplo, que nos fazia a gentileza de oferecer a qualquer momento a explicação comprovada para tudo o que dava errado neste país. Na verdade, era tão simples eleger na época “o grande problema” nacional que praticamente ninguém tinha dúvida: ou o Brasil acabava com a saúva, ou a saúva acabava com o Brasil. Vá tentar alguém, hoje em dia, dizer alguma coisa parecida. Só conseguirá produzir ruído de motor que não pega – e deixar todo mundo com a certeza de que falou bobagem. Melhor ficar quieto, e dar a impressão de que você não tem preparo para falar de assuntos sérios, do que abrir a boca e eliminar as dúvidas a respeito, como nos aconselhava Mark Twain.
Em certos momentos, porém, um desses “grandes problemas” que impedem o Brasil de ir adiante como deveria é exposto de maneira realmente espetacular, em plena luz do meio-dia – e em tais momentos é apenas lógico, além de humano, que a calamidade exibida na frente de todos chame mais atenção que quaisquer outras. É o caso, justo agora, da Olimpíada do Rio de Janeiro, que joga para o primeiro plano o problema fatal que o Brasil tem com as suas obras públicas. É de fato um fenômeno: fora as aberrações que acontecem nos países mais desgraçados do mundo, não há nada parecido com as misérias das obras públicas brasileiras. Quase nunca ficam prontas no prazo, com a qualidade e no preço que foram escritos no contrato – ou, pior ainda, como ocorre com alta frequência, não ficam prontas nunca. Há as que não podem ser usadas depois de entregues. Há as que simplesmente desabam; o Brasil deve ser um dos campeões mundiais em matéria de viadutos, pontes ou ciclovias elevadas que vêm abaixo de uma hora para outra. Há as que não servem para nada, como hospitais sem equipamento, açudes sem água ou museus para a recepção de extraterrestres. Todas produzem rigorosas investigações que não impedem que tudo continue igual na obra seguinte. São nossas obras. São obras nossas.
A Olimpíada do Rio, naturalmente, é uma celebração. Uma vez em andamento, o foco se concentra na magia do esporte – o público está mais interessado em Usain Bolt do que no prefeito Eduardo Paes, quer ver medalhas de ouro para os atletas brasileiros em vez de discutir os encanamentos da Vila Olímpica. Além disso, a cidade ganhou com os Jogos, de forma indiscutível, melhorias que enriquecem os seus extraordinários encantos, desde que não sejam abandonadas logo após o fim dos Jogos. Mas o fato é que o Brasil mostrou mais uma vez, diante do mundo inteiro, o relacionamento doentio que existe entre governos, construtoras de obras, bancos estatais, políticos, partidos e mais um monte de gente com carteirinha de autoridade na hora de construir qualquer obra pública – nada, simplesmente nada, é normal quando eles se juntam. É como se todos trocassem de personalidade.
Quando uma empresa privada contrata uma empreiteira para a construção de um galpão com tantos metros quadrados de área e com tais ou quais itens de acabamento, vai receber exatamente o que contratou, não vai ter de pagar mais do que o combinado e receberá a obra pronta no dia previsto. Quando a mesma empreiteira faz uma obra para o poder público, tudo fica diferente – o poder público aceita qualquer absurdo em matéria de atraso, estouro no orçamento, qualidade da construção e por aí vai. É claro: o governo não paga nada, nunca, porque nada produz. Quem paga é o contribuinte de impostos, a quem não se permite um minuto de atraso na hora de pagar, e quem paga mais são justamente aqueles a quem o dinheiro faz mais falta.
A Olimpíada chegou no exato momento em que os processos de Curitiba expõem a corrupção e a inépcia sem freio que marcaram nos últimos treze anos de governo a contratação de obras e a compra de equipamentos públicos no Brasil. Ninguém, pelo jeito, aprendeu nada.
Fonte: Coluna do Augusto Nunes