A história mostra que em situações extremas, a separação entre os bancos centrais e os respectivos tesouros pode ser tênue
O Banco Central poderá ter que lançar, no futuro, um programa de
expansão quantitativa, dependendo da evolução da crise causada pelo novo
coronavírus. Mas essa é uma discussão fora de hora. Ainda há espaço
para cortes na taxa básica de juros, caso se mostre necessário ampliar
os estímulos para levar a inflação à meta.
Bancos centrais de economias desenvolvidas, do Japão, dos Estados Unidos
e da Zona do Euro, já fizeram os seus programas de expansão
quantitativa em crises passadas e na atual. Não há nada que impeça o
Brasil de fazer o mesmo, caso se encontre numa armadilha de liquidez. O
essencial é que a operação se limite às suas funções monetárias, sem que
o Banco Central se aventure no financiamento dos gastos fiscais, que
mais adiante fatalmente levariam o Brasil de volta à trilha da
hiperinflação.
Boa parte da confusão sobre uma possível emissão de dinheiro para
financiar a dívida pública se deve à falta de maiores explicações do
governo sobre porque pediu que fosse concedido ao Banco Central, na
emenda Constitucional nº 106, de 7 de maio de 2020, poderes para comprar
títulos de emissão do Tesouro nos mercados secundário e internacional
durante o estado de calamidade pública decorrente da pandemia.
Ajuda pouco o ministro da Economia, Paulo Guedes, ter dito mais de uma
vez que o Banco Central poderá imprimir dinheiro para combater a crise.
Declarações como essa do chefe maior da área fiscal levantam o fantasma
de que o Banco Central venha a financiar os gastos do Tesouro.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, mencionou algumas
vezes que a emenda constitucional permite fazer no Brasil uma “operação
twist”. Ou seja, a exemplo do que fez o Federal Reserve, comprar títulos
públicos para reduzir a inclinação da curva de juros futuros e baratear
os custos de captação das empresas. Mais recentemente, explicou que,
por enquanto, a intenção é usar o instrumento apenas para estabilizar o
mercado de dívida pública quando estiver disfuncional. Em momentos de
pânico, pode ser útil a atuação do Banco Central para reconstruir os
referenciais de preços.
Hoje, o Tesouro Nacional vem desempenhando com uma boa dose de competência essa função, mas os seus recursos são mais limitados. Com o aprofundamento da crise econômica, porém, pode se tornar
necessário o Banco Central usar instrumentos não convencionais de
política monetária para cumprir as metas de inflação. O mercado projeta
uma inflação de 1,76% para este ano e 3,25% para o próximo, abaixo das
metas, respectivamente de 4% e 3,75%. Nessas condições, é dever do BC
prover estímulos. Os juros estão em 3% ao ano e, ao longo dos meses,
poderão seguir caindo, caso se mostrem infundados os receios do BC de
que há limites para baixar a taxa Selic devido à nossa fragilidade
fiscal. Se os juros chegarem a zero com a inflação abaixo da meta,
chegará a hora de uma expansão quantitativa.
Mas será preciso observar a linha tênue que existe entre uma operação
monetária e fiscal. O texto da Emenda Constitucional cria algumas
salvaguardas, ao permitir apenas a compra de papéis no mercado
secundário, e não diretamente do Tesouro. Outro detalhe importante é
que, no Brasil, não existem os depósitos voluntários dos bancos. Eles
poderiam fazer a dívida pública desaparecer, se o BC comprar títulos e
enxugar o excesso de liquidez por meio desse instrumento.
Na essência, a diferença entre o BC comprar títulos públicos para fazer
política monetária e para financiar o Tesouro está no prazo das
operações. Se a aquisição for temporária, é uma operação monetária, se
for permanente, passa a ser uma operação fiscal. Se os passivos
acumulados pelo BC para comprar títulos forem contabilizados na
estatística da dívida pública, os limites fiscais desse tipo de operação
ficarão sempre explícitos.
Alguns economistas têm argumentado que o ponto é justamente esse: os
gastos fiscais para combater a pandemia são elevados e, portanto, será
preciso que o BC imprima dinheiro para financiar o Tesouro. A história
mostra que em situações extremas, como guerras, a separação entre os
bancos centrais e os respectivos tesouros pode ser tênue. Mas, vista de
hoje, essa discussão também é prematura. O desafio concreto é desenhar
políticas públicas efetivas que façam com que os recursos, de fato,
cheguem a quem mais precisa. E, antes de taxar a sociedade com um
imposto inflacionário, que afeta sobretudo os mais pobres, cabe exigir a
contribuição entre aqueles que são mais privilegiados no Orçamento.
Editorial - Valor Econômico