Bolsonaro foi eleito pelo núcleo duro de cidadãos claramente radicalizados, a quem ele dedica sua retórica de guerra política
Entre repetições de clichês que não surpreenderam, o presidente
Bolsonaro colocou algumas questões no meio de seu discurso no Congresso
que representam avanços na configuração do que imagina deva ser a
relação do Executivo com os parlamentares, ponto fundamental para a
aprovação de reformas estruturantes que precisa aprovar. A formação do ministério sem consultas aos partidos políticos foi um
choque positivo na relação promíscua já naturalizada no nosso
presidencialismo de coalizão, que se transformara em uma mera troca de
favores.
Pela primeira vez Bolsonaro levou a discussão para o campo das ideias,
tentando advertir seus antigos pares de que prosseguir nessa relação
espúria é desmoralizar a política e colocar em risco a credibilidade
parlamentar, já bastante abalada. Foi nesse discurso que ele entrou no debate das reformas, sem
explicita-las, mas ressaltando sua importância na retomada do
crescimento econômico. Outra questão insinuada no seu discurso é a saída
para o desemprego. Bolsonaro sempre defendeu a tese de que é preciso
abrir mão de alguns direitos para criar mais empregos.
Está sendo construída uma estratégia para defender, não apenas essa
flexibilização de direitos e deveres trabalhistas, como também para
convencer a população de que a reforma da Previdência será feita para
acabar com privilégios, não para tirar direitos adquiridos para a
aposentadoria. [sempre bom analisar o que é privilégio e o que parte da imprensa chama de privilégios;
importante ter em conta que servidor público e membro de um dos Três Poderes, são funções bem distintas.] Terá que conseguir isso para continuar merecendo a confiança de seu
eleitorado, fazendo mudanças que podem significar mais tempo de trabalho
antes da aposentadoria. A melhoria dos serviços públicos seria uma
contrapartida a esses cidadãos.
A valorização da atividade parlamentar é uma derivação positiva da
retórica de Bolsonaro, que ainda está muito dominada pela radicalização
politica. Ficou evidente no esquema de segurança opressivo e nas
referências do próprio Bolsonaro o abalo que o atentado que sofreu
provocou na sua alma, reverberado nas ações de governo que acabaram
esvaziando a presença popular na posse. O presidente agradeceu a Deus
por estar vivo, e citou que “inimigos da pátria e da ordem” tentaram por
fim à sua vida.
Para ele, o atentado transformou a campanha em um resgate de valores
nacionais. Não foi a primeira vez que Bolsonaro se referiu ao atentado
como razão para sua eleição, o que esvazia a significação de sua
vitória, que em outras vezes classificou de mudança de rumo provocada
pela maioria dos eleitores, o que me parece muito mais próximo da
verdade. Bolsonaro foi eleito pelo núcleo duro de cidadãos claramente
radicalizados, a quem ele dedica sua retórica de guerra política. Mas só
venceu a eleição porque muitos cidadãos resolveram que ele era o mal
menor, o erro novo, contra a possibilidade de o PT, o erro antigo,
voltar ao governo.
O tom do presidente Bolsonaro no parlatório pode ser explicitado pelos
gestos e expressões quase agressivas da tradutora de Libras que fez a
tradução para os deficientes auditivos. Foi uma retórica de campanha
para os populares, repetindo clichês que provocaram reações de euforia
do publico: o direito de defesa, que se traduz na flexibilização do
posse de armas, a necessidade de proteger e valorizar os policiais, e a
ameaça do socialismo, que transformaria nossa bandeira em vermelha.
Sem dúvida são temas populares, tanto que o público respondeu com
refrões e gestos. Os governos socialistas em países da região, todos
ligados e até mesmo financiados pelo governo brasileiro, indicam que o
projeto estava sendo montado. [financiados pelo governo do partido perda total e que tão cedo não voltará ao poder, talvez até seja implodido nas eleições municipais de 2020.] Mas a ameaça socialista nunca passou da retórica petista, pois não
encontrou em nenhum momento dos 13 anos de governo espaços para uma ação
mais efetiva. Exacerbar essa possibilidade é o mesmo que faz agora a esquerda, ligando
a vitória de Bolsonaro a uma ameaça fascista à democracia brasileira.
A dosagem das palavras, diferentes no Congresso e no parlatório do
Palácio do Planalto, leva a crer que o presidente Jair Bolsonaro não
pretende abrir mão da retórica de guerra, que tanto agrada a certo
eleitor seu. Vamos aguardar que atenda aos demais eleitores, que esperam
resultados positivos na construção de uma sociedade sem discriminações,
como também prometeu.
Merval Pereira - O Globo