A democracia
no Brasil, para efeitos práticos e quando se deixa de lado a hipocrisia
gigante que sempre fez do nosso “estado de direito” uma ficção vazia,
tola e pretensiosa, não existe mais a esta altura do ano de 2021. Talvez
nunca tenha existido, mas, se um dia existiu, deixou de existir em
algum ponto do governo do presidente Jair Bolsonaro
– ou, mais precisamente, quando ele venceu as eleições de 2018. O
resultado nunca foi aceito pelos adversários, não de verdade.
Já pediam
seu impeachment antes de ele tomar posse; nem queriam que assumisse, sob
a alegação de que tinha feito mau uso das redes sociais durante a
campanha eleitoral. De lá para cá, só piorou.
O governo, em nenhum momento da sua trajetória, fez valer a força dos votos que teve. O Congresso Nacional, controlado por gangues, nunca valeu nada – tem medo do Supremo Tribunal Federal,
pelo passivo penal de boa parte dos seus integrantes, e vive de quatro
diante dele. Por default, como se diz, e pela cobiça política da maior
parte dos seus ministros, o STF assumiu o poder e vem governando o
Brasil sozinho – com o apoio decidido de uma elite formada por
empreiteiras de obras, escritórios de advocacia criminal especializados
em defender acusados de corrupção e as castas mais altas que mandam no
aparelho do Estado. Às vezes aconselham os ministros. Às vezes dão
instruções. Sempre pregam a predominância do “Judiciário” sobre os
outros Poderes.
O
resultado prático é que hoje o STF governa sozinho. Toma decisões que,
segundo a lei, deveriam ser tomadas pelo Executivo ou pelo Legislativo,
coloca-se agressivamente acima de ambos e só aceita aquilo com o que
concorda, ou em que não tem interesse. Há de tudo nesta salada. O
tribunal, para começar, conduz um inquérito abertamente ilegal para
apurar a divulgação de “fake news” (assim mesmo, em inglês, como se não
houvesse no idioma oficial do Brasil as palavras “falsa” e “notícia”) e
“atos antidemocráticos”; o processo é tocado por policiais escolhidos
pessoalmente pelo ministro-inquisidor, sem a participação do Ministério Público e não tem data para acabar, nem o direito de defesa pleno para os indiciados.
Também por decisão de um ministro só, o STF anulou de uma vez todos os processos penais existentes contra o ex-presidente Lula
– condenado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em
terceira e última instância, por nove magistrados diferentes. Não se
decidiu se Lula é culpado ou não; o STF achou, apenas, que ele tinha
sido julgado na cidade errada, e por isso zerou tudo.
Ao mesmo tempo,
mandou para a prisão um deputado federal e um jornalista, por crime de
opinião; interferiu diretamente, assim, nas funções da Câmara dos
Deputados, e anulou em termos práticos o direito à imunidade
parlamentar.
Ou seja: o STF deu a si próprio o poder de prender quem lhe
dá na telha, aberração absolutamente proibida pela Constituição.
Quer
dizer que qualquer um pode ser preso, como em Cuba ou na Venezuela? Sim,
quer dizer exatamente isso.
O STF, ao decidir que nenhuma
decisão tomada em relação à covid pelas “autoridades locais” poderia ser
modificada pelo governo federal, deu a governadores e prefeitos os
poderes de suspender, quando bem lhes parece, o direito de ir e vir, de
fechar escolas durante um ano e meio ou de proibir a venda de carvão.
Proíbe que helicópteros da polícia sobrevoem favelas no Rio de Janeiro.
Veta a construção de uma ferrovia em Mato Grosso. [caso da ferrovia FERROGRÃO; decisão monocrática do ministro Moraes.] Manda o presidente do
Senado abrir uma CPI. Acaba de abrir um inquérito contra o presidente da
República e quer a sua inclusão no processo dos “atos
antidemocráticos”. Não há sinal de que vá ficar por aí.
J. R. Guzzo, jornalista - O Estado de S. Paulo