Ana Paula Henkel
O cenário de absoluta promiscuidade jurídica no Brasil deixa bem claro que Deltan não foi apenas cassado. Ele foi também caçado
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou na noite de terça-feira, 16 de maio, o mandato do ex-coordenador da Lava Jato em Curitiba que se elegeu deputado federal em 2022 pelo Estado do Paraná com mais de 344 mil votos. O julgamento que cassou Dallagnol teve como relator o ministro Benedito Gonçalves, sim, aquele dos tapinhas na cara.
O relator companheiro de Lula foi o único a votar de facto. A leitura do voto, que durou cerca de 40 minutos e que teve decisão proferida em escandalosos 66 segundos, retratou a tese de que Dallagnol tentou burlar a Justiça ao deixar o Ministério Público durante o período em que, segundo o magistrado, respondia a processos administrativos que poderiam resultar em condenação, transformando-o em “ficha suja”. O ministro que recebe tapinhas na cara (de pau) em público de ex-presidiário afirmou que o que Deltan fez foi apenas uma “manobra para driblar a inelegibilidade”.
Atendendo a um pedido do PT, o corregedor da Justiça Eleitoral, Benedito Gonçalves, proibiu Bolsonaro de usar imagens do 7 de Setembro em campanhas. Na posse de Moraes no TSE, Lula e Gonçalves, indicado pelo petista ao STJ, se encontraram: pic.twitter.com/2esb55edRR
— Clayton Ubinha (@clayton_ubinha) September 12, 2022
[ Ministro Benedito Gonçalves, do TSE, recebe do companheiro Lula um carinhoso tapinha no rosto. - Foto: Reprodução/ Twitter (foto inserida pelo Blog Prontidão Total.) [são momentos carinhosos e que mostram que autoridades e criminosos também são capazes de momentos de carinho.]
Saímos de uma aura de justiça da “República de Curitiba” para a “República Soviética do Brasil”
O que o TSE fez nesta semana foi mais um evento grave desse insano regime totalitário ao qual foi submetido o Brasil, uma anulação forçosa e inconstitucional da vontade popular: 344.917 pessoas foram caladas em uma canetada vergonhosa, em mais um abjeto caso de perseguição política de quem claramente discorda do sistema podre que está implodindo a República e transformando o Brasil em um absoluto regime totalitário.
Os juízes de BerlimSaímos de uma aura de justiça da “República de Curitiba” para a “República Soviética do Brasil”. E creio que podemos ir além da aura persecutória dos bolcheviques para retratar o sentimento e o medo justificado que estamos vivendo.
Daniel Silveira, condenado a oito anos de prisão | Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
É profundamente incômodo visitarmos a história e nos depararmos com as páginas que mostram que, no Terceiro Reich, o estado policial é caracterizado pela detenção arbitrária e encarceramento de opositores políticos e ideológicos. Com a reinterpretação de “guarda protetora” (Schutzhaft) em 1933, o poder de polícia tornou-se independente dos controles judiciais. Na terminologia nazista, “custódia protetora” significava a prisão — sem revisão judicial — de opositores reais e potenciais do regime.
O Terceiro Reich foi também chamado de dual state, ou estado duplo, já que o sistema judicial normal coexistiu com o poder arbitrário de Hitler e da polícia. No entanto, como a maioria das áreas da vida pública após a ascensão nazista ao poder em 1933, o sistema de Justiça alemão passou por uma “coordenação”, para maior alinhamento com os objetivos nazistas. Associações profissionais envolvidas com a administração da Justiça foram fundidas na Liga Nacional Socialista de Juristas Alemães. Em abril de 1933, Hitler aprovou uma das primeiras leis antissemitas, expurgando judeus e também juízes, advogados e outros oficiais do tribunal de suas profissões. Além disso, a Academia de Direito Alemão e os teóricos jurídicos nazistas, como Carl Schmitt, defendiam a nazificação da lei alemã, limpando-a da “influência judaica”. Os juízes foram obrigados a deixar que o “sentimento popular saudável os guiasse em suas decisões”, e não as leis.
Hitler então decidiu aumentar a confiabilidade política dos tribunais. Em 1933, ele estabeleceu tribunais especiais em toda a Alemanha para julgar casos “politicamente delicados”. Insatisfeito com os veredictos de “inocente” proferidos pela Suprema Corte no Julgamento do Incêndio do Reichstag, Hitler ordenou a criação do Tribunal do Povo em Berlim em 1934 para julgar traição e outros “casos políticos” importantes.
Desde a sua fundação, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães lutou contra o estado de direito. A aquisição nacional-socialista também representou uma vitória do direito penal autoritário sobre o direito penal liberal. A criação dos Tribunais Especiais em 1933 e do “Tribunal do Povo” em 1934 foram marcos importantes nas terríveis páginas da história nazista contra a humanidade.
Durante quatro anos, assistimos atônitos à complacência da imprensa no Brasil e à quebra do ordenamento jurídico no país, afinal, era para derrubar o “Bozo”, o “novo Hitler”, o “ditador”, o “autoritário”. Até os ditos e autoproclamados conservadores e liberais demonizaram e desumanizaram Jair Bolsonaro porque “ele não é conservador” no checklist burkeano dos hipócritas do Instagram que surfaram e nadaram de braçadas na onda conservadora empurrada por Bolsonaro. Muitos elogiavam o presidente para vender cursos e livros, para depois posarem de limpinhos que “não se misturam com essa gente bolsonarista”. Permaneceram em absoluto silêncio durante 2020, 2021 e 2022 enquanto nossa Constituição era estuprada diariamente, afinal, “oh well… são bolsonaristas sendo perseguidos e presos. Inconstitucionalmente, sim. Mas ainda são bolsonaristas”.
Jair Bolsonaro, assim como Donald Trump, foi um fenômeno reativo da sociedade que estava estafada de tanta corrupção, aparelhamentos, acordos. Sabíamos que a eleição de 2022 era muito, muito além de Bolsonaro ou Lula. O próprio Deltan Dallagnol, homem que lutou bravamente no MP contra um sistema carcomido, julgou o presidente Bolsonaro de maneira injusta e sem se ater a críticas pontuais e pertinentes. O dano agora está feito. O monstro de alma autoritária e caneta tirânica virá para todos.
Benedito Gonçalves, como um bom servidor do projeto de poder do partido mais corrupto da nossa história, mostrou nesta semana que sua célebre frase proferida a Alexandre de Moraes, “missão dada, missão cumprida”, não é mote exclusivo dele, mas de todo um sistema que agora se arma contra o povo em projetos de censura, mordaça, intimidações, perseguições, prisões, desmandos, imoralidades e inconstitucionalidades.
Cabe a nós, assim como as páginas da história claramente ensinam, que o silêncio e o medo não possam mais ser uma opção. A história, dificilmente, não se repete.
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Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste