Enquanto
há brasileiros competindo para serem os melhores, o jeca e a respectiva
criatura quebram
cotidianamente o próprio recorde de delinquência
O
que torna o cotidiano possível? O Brasil sempre me deu a impressão de que padecia
da deformação resultante da inversão “o importante é ganhar, não competir”,
mas isso parece a forma branda da patologia verdadeira: “importante não é
ganhar, mas ganhar sempre”. O texto primoroso de Augusto Nunes, da gratidão
citando a excelente Dorrit Harazim, passando pela homenagem ao grande Ricardo
Prado, até a comemoração do que espero ser uma melhora definitiva na alma
enferma de um país infantiloide e brutalizado na rejeição a qualquer resultado
que não o pódio – e, neste, o topo –, ensina um olhar de generosidade
sobre grandes homens e mulheres que inspiram uma nação e colonizam a alma dela
com a beleza de fazer flutuantes os limites ou da poesia no desafio aos limites
imóveis.
Essa
generosidade nada tem de condescendente e contempla não somente o desempenho quase
inumano dos competidores numa olimpíada, mas também a risonha oportunidade de
que o possam testemunhar homens e mulheres normais, heróis anônimos de si
mesmos que, além de envolvidos em embates íntimos ou privados normais da vida,
tentam sobreviver moral e fisicamente num Brasil cujas melhores potencialidades
o lulopetismo sabotou enquanto se servia das piores.
Agora
mesmo, enquanto há brasileiros competindo para serem os
melhores, o jeca e a respectiva criatura quebram cotidianamente o
próprio recorde de delinquência numa disputa sem limites ao pódio mais
alto do pior que a terra tão garrida produziu para ser tão esbulhada. Enquanto
ele, sempre afastando os limites da sordidez, para escapar da merecida e tardia
cadeia, mente numa cartilha em quatro idiomas distribuída no exterior, difamando o Brasil, as instituições brasileiras, Sergio Moro
e Rodrigo Janot; ela, para escapar do merecido e tardio impeachment,
faz do Alvorada a locação para um documentário ficcional a respeito do processo
lendo uma carta em que encena promessas tão plausíveis quanto válidas de uma
mulherzinha de caráter miúdo que demitiu a verdade de todas as promessas
inventadas, com exceção de uma: fazer o diabo para ganhar a eleição.
Maquiando
o vazio, Dilma repetiu a tríade formada por uma verdade
desnecessária e duas mentiras inúteis: foi torturada pela ditadura
militar, o que não a inocenta do crime de responsabilidade fiscal; é honrada,
OK, Fernando Henrique Cardoso acreditar nisso não a inocenta do crime de
responsabilidade fiscal; ela não tem conta no exterior, nem eu, só que não
cometi crime de responsabilidade fiscal, ela sim, crime pelo qual será
condenada.
Os
bravos Sergio Moro ou Hélio Bicudo não são heróis e há coisas que o impeachment
e a Lava Jato não poderão fazer, mas acho que eles são figuras inspiradoras e tristes do país que,
desgraçado por Lula e Dilma, não pudesse contar com eles. Do mesmo modo, ainda
que a excepcionalidade de Ricardo Prado ou Thiago Braz não baste para curar
nossa impotência olímpica, eles integram, para sempre e mesmo sem repetir o que
já fizeram, uma coleção heterogênea de genialidades humanas que deslumbram o
presente, como Usain Bolt, e inspiram o futuro.
Me lembro
que em agosto de 2012, quando esta coluna ergueu o
justo brinde a Usain Bolt por ter sobrevoado no chão da pista olímpica de
Londres 100 metros em menos de 10 segundos, eu quis comentar, mas não
sabia o que dizer. Na ocasião, minha filha me perguntou para que serve correr
100 metros em menos de 10 segundos. Também não soube o que dizer. Mas falei
qualquer coisa sobre como isso não acontece da noite para o dia, que exige
treino absurdo, disciplina espartana, que a marca genial era inédita, que o
feito ajuda a entender melhor a fisiologia do corpo humano e… vi que era melhor
ter ficado calada. Aquilo não estava alcançando a pequena.
Fiquei
olhando para os olhos grandes dela, atentos, lindos na sua apressada
curiosidade pelo mundo. Lembrei-me de um dia de agosto de 1977, quando, só um pouco maior do
que ela, o cabelo preso num alto rabo-de-cavalo, cheguei da escola vestindo o
uniforme de sainha xadrez plissada e camisa branca. Não
quis almoçar, brincar, nem fazer a lição de casa. Por quê? Minha mãe deixando as costuras quis saber e eu não
sabia como explicar que meu primeiro namorado acabara de morrer sem que eu
pudesse contar a ele da minha paixão.
Passei o
dia inteiro ouvindo as músicas dele numa vitrolinha ordinária do Mickey, como
se cada uma fosse um beijo: It’s now or never, Kiss me quick, Burning love,
Blue moon, Suspicious mind, Love me tender, Blue suede shoes, tantas outras e a
eterna You’re always on my mind. Por algum tempo, o cotidiano só era
possível se eu ouvisse Elvis Presley.
Então,
soube o que dizer à minha filha: como qualquer realização genial, alguém correr 100
metros em menos de 10 segundos, fazer mil gols e ter os mais lindos gols não
feitos ou saltar mais de 6 metros é um sonho que torna possível o cotidiano e,
com outras palavras, confidenciei que isso faz aquilo que é pó e transitório em
nós experimentar por instantes, como num beijo, o eterno.
Fonte: Coluna do Augusto Nunes