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sábado, 8 de julho de 2023

A metamorfose de Lira - Augusto Nunes

Revista Oeste

O turista sem pressa de Lisboa vira velocista ao entrar na misteriosa selva tributária



Arthur Lira conversa com o ministro do Supremo, Gilmar Mendes, em jantar do grupo Esfera Brasil, no mês de março | Foto: Jefferson D. Modesto/Divulgação

A agenda do deputado federal Arthur Lira é um desfile de problemas a resolver e nós a desatar. O presidente da Câmara decide quando e como serão votados os incontáveis projetos de lei ou emendas à Constituição e administra as relações do Poder Legislativo com o Judiciário e o Executivo. O chefe político regional jamais afasta da mira os adversários comandados pelo senador Renan Calheiros. 
O homem de negócios mantém sob estreita vigilância tanto o desempenho das empresas que controla em Alagoas quanto o andamento dos processos e inquéritos que o envolvem. Não é pouca coisa, mas não é tudo. Aos 54 anos, ele encontra tempo para demonstrar que no peito de um político durão também bate um coração. Em 22 de junho, ele resolveu que a Câmara merecia uma folga de dez dias, recomendou aos deputados que aproveitassem a derradeira festa junina e embarcou para Portugal em companhia da namorada. Fórum aconteceu na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa | Foto: Divulgação
 
Para avisar que trabalha até quando descansa, Lira comunicou que participaria do seminário promovido anualmente pela instituição de ensino fundada em Brasília pelo ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal. 
Como a discurseira com citações em latim e alemão só começou em 26 de junho, o casal teve três dias inteiros para passear por Lisboa. 
Como o palavrório termina pontualmente às 6 da tarde, seja qual for o tema em debate, celebridades presentes à disputadíssima boca-livre festejaram já na noite de abertura o aniversário de Lira, e capricharam no Parabéns a Você puxado pela namorada do homenageado. 
Nas noites seguintes, sem exibir quaisquer vestígios de pressa, o presidente da Câmara trocou figurinhas em templos da gastronomia com figurões do Executivo e do Judiciário. Juntaram-se numa mesma mesa, por exemplo, o vice-presidente Geraldo Alckmin, ex-carola juramentado convertido em militante socialista, e o ministro do STF André Mendonça, que esqueceu o currículo terrivelmente evangélico em poucos meses de convívio com colegas pouco tementes a Deus.
 
O que terá ouvido Arthur Lira para regressar ao Brasil com a pressa de quem precisa tirar o pai da forca? 
O que terá dito para entrar em julho com a ansiedade de quem vai afastar a mãe do caminho que leva ao penhasco? 
Que acordos terá feito para retomar os trabalhos na Câmara com a afoiteza de quem vê o filho a um passo da areia movediça? 
A metamorfose segue sem explicações: o que aconteceu para que o turista com tempo de sobra reaparecesse em Brasília decidido a aprovar em algumas horas uma das propostas de reforma tributária que dormem no Congresso há muitos anos? 
A menos que o Arthur Lira lisboeta fosse um sósia encarregado de distrair a plateia para que o verdadeiro Arthur Lira pudesse assimilar ensinamentos despejados 24 horas por dia por doutores no assunto, nosso Usain Bolt do Legislativo (a exemplo de 99 em cada cem integrantes do Congresso) entende de selvas tributárias tanto quanto sabe de física quântica.  
Mas avisou, em 3 de julho, que o amontoado de normas — várias delas confusas, algumas impenetráveis — seria votado em regime de urgência. 

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), discursa antes da aprovação da PEC da reforma tributária, nesta quinta-feira, 6 | Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Deputados federais são representantes do povo. Mas voto não é procuração para que o votado faça o que quiser com um sistema tributário que sangra os pagadores de impostos enquanto sustenta a mastodôntica máquina pública
Por que impor ao eleitorado mudanças tão relevantes sem debates no plenário, sem esclarecimentos indispensáveis, sem que os brasileiros que bancam todas as despesas possam descobrir o que ajuda e o que atrapalha? 
Esses cuidados elementares garantiram o apoio da imensa maioria da população, traduzido até em manifestações de rua, à reforma da Previdência. Por que ignorar a fórmula que deu certo? 
Como engolir sem engasgos a liberação por atacado do dinheiro requerido por emendas parlamentares? 
É muita pergunta sem resposta. É muita conversa em voz baixa na Praça dos Três Poderes.

Neste 6 de julho, o ministro Gilmar Mendes presenteou Lira com a suspensão de investigações que acrescentavam alguns vincos ao rosto do aniversariante na festiva noitada em Lisboa

Se essa suspeitíssima velocidade for reprisada no Senado, o Congresso conseguirá o aparentemente impossível: superar o recorde estabelecido em 1961 para impedir que o caminho da normalidade democrática fosse obstruído pela renúncia do presidente da República. Sete meses depois da posse, Jânio Quadros resolveu cair fora do Palácio do Planalto, em 25 de agosto
Como o vice-presidente João Goulart estava na China em missão oficial, o gabinete vago foi ocupado interinamente pelo deputado paulista Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara. 
Também inesperadamente, o general Odylio Denys, o almirante Sílvio Heck e o brigadeiro Grün Moss comunicaram que as Forças Armadas não admitiriam a substituição de Jânio por Jango. 
Imediatamente, o governador gaúcho Leonel Brizola entrincheirou-se no Palácio Piratini e, com o apoio das tropas aquarteladas no Rio Grande do Sul, exigiu que fosse respeitado o processo sucessório determinado pela Constituição.

Uma semana depois de voltarem do Gilmarpalooza em Lisboa, o anfitrião do evento suspende a investigação do keynote speaker.

Por @aguirretalento 👇https://t.co/fRRg6p7o4z— Malu Gaspar (@malugaspar) July 6, 2023


O general Ernesto Geisel convenceu a trinca no poder de que uma encrenca daquele tamanho requeria interlocutores de fina linhagem. Era coisa para um Tancredo Neves. Autorizado a falar em nome das Forças Armadas, Geisel telefonou para o casarão em São João del-Rei onde o velho domador de tempestades convalescia desde outubro do ano anterior da derrota na disputa do governo de Minas Gerais.  
Examinava com carinho a ideia de encerrar a carreira política quando aceitou a missão, proposta por Geisel, que tornaria a depositá-lo no olho do furacão: costurar um acordo com Jango. Treze dias depois da renúncia, o Brasil livrou-se da insônia com a entrada em vigor do delicado arranjo esculpido por Tancredo, aceito pelas partes antagônicas e aprovado pelo Congresso. Jango assumiu a Presidência da República, mas com poderes reduzidos pela adoção do regime parlamentarista.

 

Tancredo Neves | Foto: Wikimedia Commons

A escolha do nome do primeiro-ministro foi feita sem disputas, debates ou dúvidas. Só podia ser Tancredo Neves.
Ele ficaria pouco tempo no cargo e, em 1963, um plebiscito restabeleceria o presidencialismo à brasileira que apressou a queda de Jango. Mas a sensatez do conciliador vocacional afastou, em agosto de 1961, o fantasma da guerra civil. Um acordo entre contrários tem de basear-se em princípios e exige concessões recíprocas, ensinava Tancredo. Passados 62 anos, o país é assombrado por acertos sussurrados nas catacumbas de Brasília, ditados por interesses que ignoram princípios e por coincidências perturbadoras. Neste 6 de julho, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes presenteou Arthur Lira com a suspensão de investigações que acrescentavam alguns vincos ao rosto do aniversariante na festiva noitada em Lisboa.

A linha que separa a relação amistosa da amizade íntima não pode ser cruzada por jornalistas e suas fontes de informação. 
Nem por chefes de distintos poderes da República. 
Sempre que isso acontece, o convívio harmonioso vira ligação incestuosa. Tancredo Neves, que sempre soube disso, morreu sem saber que reuniões da elite política ficariam parecidas com forrós no clube dos cafajestes. Melhor para o sábio mineiro.


Leia também “Amorim é o passarinho de Lula”

 

 

domingo, 25 de abril de 2021

O Atleta é mais veloz que a Justiça - Revista Oeste

A promoção de Renan Calheiros a relator da CPI da Pandemia confirma que, no Brasil abastardado pelo Supremo, investigado investiga

 

A linhagem dos grandes inventores de nomes nasceu na entrada dos cinemas e viveu seus momentos mais brilhantes nos anos 50. O show de criatividade era escancarado nos letreiros riscados a giz que identificavam o filme em cartaz. Ninguém conhecia nenhum dos autores daquelas obras de arte, mas eles sabiam perfeitamente com quais plateias lidavam. Sabiam, por exemplo, que quem gostava de faroeste norte-americano não via com entusiasmo títulos reduzidos a uma palavra só. Pouco importava que nos Estados Unidos e em Portugal o clássico estrelado por Alan Ladd fizesse sucesso desde o lançamento, em 1953, com o nome do principal personagem: “Shane”. É pouco para o Brasil, decidiu algum anônimo artista escondido na empresa distribuidora — e Shane foi substituído por um irresistível chamariz em maiúsculas: OS BRUTOS TAMBÉM AMAM

Em Portugal, aliás, a regra era manter o título original ou traduzi-lo literalmente. Filmado em 1969, The Wild Bunch tornou-se nas telas lusitanas Uma Quadrilha Selvagem. Por aqui, foi rebatizado com um achado que induzia o mais pacífico cinéfilo a levar as duas mãos a coldres imaginários já na passagem pela bilheteria: MEU ÓDIO SERÁ TUA HERANÇA. É claro que esses mestres da hipérbole não admitiriam que fosse confinado em míseras cinco letras — Giant — o superfaroeste da safra de 1956 protagonizado por Elizabeth Taylor, Rock Hudson e James Dean. Os portugueses se deram por satisfeitos com um insosso Gigante. Também por isso, merecia figurar nos créditos de abertura, logo abaixo do trio estelar, o reinventor do nome no Brasil: ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE.

A caminho da extinção nos letreiros de cinema, a tribo sobreviveu graças ao surgimento na Polícia Federal, no início deste século, de uma ramificação igualmente inventiva e bem mais prolífica. Por lei, a escolha do nome de uma operação da PF cumpre ao delegado que vai chefiá-la. Com a intensificação das ofensivas, os doutores recorreram a todas as modalidades de cobra, macaco, peixe e outros bichos antes da capitulação: aquilo era coisa para especialistas. E então se sucederam os surtos criativos. 

Em outros países, operações do gênero têm denominações sisudas, que usam terno escuro, falam baixo e jamais sorriem. No Brasil, reina a imaginação sem fronteiras. Há um pouco de tudo na lista de operações: erudição (Satiagraha, Ararath), bom humor (Fatura Exposta), poesia (Rosa dos Ventos), apreço por superlativos (Anel de Gigantes, Ad Infinitum) ou mistério (Ratatouille, Ouvidos Moucos). Há os irônicos: Tergiversação, por exemplo, inspirou-se na palavra que engordara o vocabulário indigente de Dilma Rousseff naquele semestre. E há os inevitáveis, como referências à pandemia no balanço de 2020. A lista anual incluiu, entre outras, as operações Virus Infectio, Placebo, Calvário e Mercadores do Caos.

Foi a mais célebre e bem-sucedida operação da História que revelou a existência de uma maloca habitada por descendentes da tribo que brilhou nos letreiros de cinema e continua a fazer bonito na Polícia Federal. Alojados num setor semiclandestino da construtora Odebrecht que se tornaria conhecido como Departamento de Propinas, os craques em batizado criavam codinomes que mais revelaram do que esconderam a identidade dos políticos que tiveram o caixa dois irrigado por dinheiro da empreiteira e se refugiaram no pântano devassado pela Lava Jato. É o caso da trinca formada por senadores que se aquecem para entrar em ação na CPI da Pandemia.  
Humberto Costa, do PT pernambucano, virou caso de polícia quando era ministro da Saúde de Lula e se envolveu no escândalo dos Sanguessugas, produzido por gente que desviou com voracidade de vampiro verbas destinadas à área da Saúde. Ganhou da Odebrecht o codinome perfeito: Drácula
Tão perfeito quanto o Whisky extraído de uma das mais caras predileções de Jader Barbalho, morubixaba do MDB paraense e pai do atual governador Helder Barbalho (codinome Cavanhaque). 
Mas nenhum é tão irretocável quanto o nome de guerra de Renan Calheiros: Atleta. A folha corrida do senador denuncia um maratonista da delinquência. O prontuário do gerente do MDB alagoano é coisa de matar de inveja até um campeão de bandalheiras promovido a chefão do PCC.

José Renan Vasconcelos Calheiros, natural de Murici, entrou no saloon da baixa política pela última porta do corredor à esquerda de quem chega: nos anos 70, enquanto cursava a Faculdade de Direito em Maceió, matriculou-se no PCdoB e logo se elegeria deputado estadual com o apoio da seita comunista. O rebanho tinha mudado de bússola. Trocara a China pela Albânia, Mao Tsé-tung por Enver Hoxja, o mato pela capoeira. O livro de pensamentos do ditador albanês era tão profundo que as cabras montanhesas daquele grotão europeu poderiam, como a formiguinha de Nelson Rodrigues, atravessá-lo com água pelas canelas. 

Quem serve voluntariamente nas galés de um Enver Hoxja embarca em qualquer canoa, confirma o ziguezague de Renan. Achou boa ideia transformar o prefeito e depois deputado federal Fernando Collor em alvo predileto. “É o príncipe herdeiro da corrupção”, recitou anos a fio. Achou melhor ainda a ideia de aceitar o convite do governador Fernando Collor e assumir a Secretaria da Educação. “Apesar de adversários no passado, sempre fomos amigos”, fantasiou. Nunca seriam amigos. Foram cúmplices quando as circunstâncias recomendavam.

Renan estava no famoso jantar em Pequim durante o qual emergiu a ideia que parecia conversa de fim de noite num botequim de Maceió
que tal transformar o governador na cabeceira da mesa em presidente da República? 
Meses depois, ambos homiziados numa esperteza batizada de Partido da Reconstrução Nacional (PRN), Collor e o líder da bancada do governo na Câmara dos Deputados subiram juntos a rampa do Planalto. O aliado Renan Calheiros defendeu com veemência o conjunto de medidas hediondas que incluiu o confisco da poupança. “Quem não entender que o Brasil mudou perderá o bonde da História”, comunicou à nação. O desafeto Renan Calheiros defendeu com igual veemência o impeachment do ex-parceiro que não subira no bonde que fretou para eleger-se governador. O bucaneiro oportunista mandou chumbo em tudo que se movesse no navio corsário do qual saltara ao pressentir o naufrágio. Só poupou Itamar Franco. Depois trocou Itamar por Fernando Henrique Cardoso e ganhou o Ministério da Justiça. Em seguida trocou Fernando Henrique por Lula. Em fevereiro de 2005, aos 55 anos, virou presidente do Senado.

O clássico da chanchada pornopolítica em que contracenou com a jornalista Mônica Veloso apressou a barganha repulsiva: em 4 de dezembro de 2007, para escapar da cassação do mandato por quebra de decoro (corrupção graúda, em língua de gente), renunciou ao comando do Senado e seguiu usando a carteirinha de congressista. Voltou ao palco meses mais tarde. Arrendado por Lula para liderar a guerra pelo sepultamento da CPI da Petrobras, o general da banda podre convocou para o combate o de novo comparsa Fernando Collor, rebaixado a ajudante de ordens, e foi à luta. 

Nas semanas seguintes, Renan foi mais Renan do que nunca. Caprichando no sotaque de cangaceiro, insultou quem dele discordava, valeu-se de chantagens e extorsões para inibir oposicionistas, achincalhou o Conselho de Ética, desmoralizou a CPI e conseguiu cumprir a missão abjeta que Lula lhe encomendara. De lá para cá, continuou a fazer o que pode e o que é proibido para transformar o Senado num clube de cafajestes da terceira idade.

Em nações civilizadas, o Atleta da Odebrecht estaria na cadeia há muito tempo. Num Brasil abastardado pelo Supremo Tribunal Federal, Renan segue driblando a capivara cevada pela pilha de processos e inquéritos. Em vez de temporadas na gaiola, coleciona mandatos na presidência do Senado. Até agora são três. Vai começar a campanha para chegar ao quarto na quinta-feira, fantasiado de relator da CPI da Pandemia. Só no País do Carnaval um investigado investiga. O criador do codinome do senador merece alguma condecoração. Sem sair da Praça dos Três Poderes, sem se afastar de cargos relevantes, Renan Calheiros foge da Justiça há quase 30 anos. É o nosso Usain Bolt da corrupção. É um tremendo Atleta.

Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Galvão é ouro em gafe: pediu para cadeirante ficar em pé



"Todos em pé, por favor, que vamos todos ouvir o hino da Jamaica", disse o apresentador. Entre os convidados estava Fernando Fernandes, atleta paraolímpico


VÍDEO: Olha a Gafe! Com cadeirante no estúdio, Galvão Bueno pede para todos ficarem de pé. Veja o vídeo!

O narrador Galvão Bueno cometeu uma gafe durante a transmissão da prova dos 200m noite da última quinta-feira. Depois que Usain Bolt levou o ouro, o apresentador pediu que todos os presentes no estúdio se levantassem para que Marcelo Adnet cantasse o hino da Jamaica, país natal do ídolo – o problema é que entre os convidados estavam Lars Grael, que teve uma perna amputada e caminha com o auxílio de muleta, e Fernando Fernandes, atleta paraolímpico que utiliza cadeira de rodas.

 “Por isso que eu nem levantei. Deixa eu ficar sentado”, comentou Fernandes em tom de brincadeira. Ao perceber o “fora”, todos resolveram permanecer sentados. 

Fonte: Revista VEJA

Uma mulherzinha de caráter miúdo



Enquanto há brasileiros competindo para serem os melhores, o jeca e a respectiva criatura quebram cotidianamente o próprio recorde de delinquência

O que torna o cotidiano possível? O Brasil sempre me deu a impressão de que padecia da deformação resultante da inversão “o importante é ganhar, não competir”, mas isso parece a forma branda da patologia verdadeira: “importante não é ganhar, mas ganhar sempre”. O texto primoroso de Augusto Nunes, da gratidão citando a excelente Dorrit Harazim, passando pela homenagem ao grande Ricardo Prado, até a comemoração do que espero ser uma melhora definitiva na alma enferma de um país infantiloide e brutalizado na rejeição a qualquer resultado que não o pódio – e, neste, o topo –, ensina um olhar de generosidade sobre grandes homens e mulheres que inspiram uma nação e colonizam a alma dela com a beleza de fazer flutuantes os limites ou da poesia no desafio aos limites imóveis.

Essa generosidade nada tem de condescendente e contempla não somente o desempenho quase inumano dos competidores numa olimpíada, mas também a risonha oportunidade de que o possam testemunhar homens e mulheres normais, heróis anônimos de si mesmos que, além de envolvidos em embates íntimos ou privados normais da vida, tentam sobreviver moral e fisicamente num Brasil cujas melhores potencialidades o lulopetismo sabotou enquanto se servia das piores.

Agora mesmo, enquanto há brasileiros competindo para serem os melhores, o jeca e a respectiva criatura quebram cotidianamente o próprio recorde de delinquência numa disputa sem limites ao pódio mais alto do pior que a terra tão garrida produziu para ser tão esbulhada. Enquanto ele, sempre afastando os limites da sordidez, para escapar da merecida e tardia cadeia, mente numa cartilha em quatro idiomas distribuída no exterior, difamando o Brasil, as instituições brasileiras, Sergio Moro e Rodrigo Janot; ela, para escapar do merecido e tardio impeachment, faz do Alvorada a locação para um documentário ficcional a respeito do processo lendo uma carta em que encena promessas tão plausíveis quanto válidas de uma mulherzinha de caráter miúdo que demitiu a verdade de todas as promessas inventadas, com exceção de uma: fazer o diabo para ganhar a eleição.

Maquiando o vazio, Dilma repetiu a tríade formada por uma verdade desnecessária e duas mentiras inúteis: foi torturada pela ditadura militar, o que não a inocenta do crime de responsabilidade fiscal; é honrada, OK, Fernando Henrique Cardoso acreditar nisso não a inocenta do crime de responsabilidade fiscal; ela não tem conta no exterior, nem eu, só que não cometi crime de responsabilidade fiscal, ela sim, crime pelo qual será condenada.

Os bravos Sergio Moro ou Hélio Bicudo não são heróis e há coisas que o impeachment e a Lava Jato não poderão fazer, mas acho que eles são figuras inspiradoras e tristes do país que, desgraçado por Lula e Dilma, não pudesse contar com eles. Do mesmo modo, ainda que a excepcionalidade de Ricardo Prado ou Thiago Braz não baste para curar nossa impotência olímpica, eles integram, para sempre e mesmo sem repetir o que já fizeram, uma coleção heterogênea de genialidades humanas que deslumbram o presente, como Usain Bolt, e inspiram o futuro.

Me lembro que em agosto de 2012, quando esta coluna ergueu o justo brinde a Usain Bolt por ter sobrevoado no chão da pista olímpica de Londres 100 metros em menos de 10 segundos, eu quis comentar, mas não sabia o que dizer. Na ocasião, minha filha me perguntou para que serve correr 100 metros em menos de 10 segundos. Também não soube o que dizer. Mas falei qualquer coisa sobre como isso não acontece da noite para o dia, que exige treino absurdo, disciplina espartana, que a marca genial era inédita, que o feito ajuda a entender melhor a fisiologia do corpo humano e… vi que era melhor ter ficado calada. Aquilo não estava alcançando a pequena.

Fiquei olhando para os olhos grandes dela, atentos, lindos na sua apressada curiosidade pelo mundo. Lembrei-me de um dia de agosto de 1977, quando, só um pouco maior do que ela, o cabelo preso num alto rabo-de-cavalo, cheguei da escola vestindo o uniforme de sainha xadrez plissada e camisa branca. Não quis almoçar, brincar, nem fazer a lição de casa. Por quê? Minha mãe deixando as costuras quis saber e eu não sabia como explicar que meu primeiro namorado acabara de morrer sem que eu pudesse contar a ele da minha paixão.

Passei o dia inteiro ouvindo as músicas dele numa vitrolinha ordinária do Mickey, como se cada uma fosse um beijo: It’s now or never, Kiss me quick, Burning love, Blue moon, Suspicious mind, Love me tender, Blue suede shoes, tantas outras e a eterna You’re always on my mind. Por algum tempo, o cotidiano só era possível se eu ouvisse Elvis Presley.

Então, soube o que dizer à minha filha: como qualquer realização genial, alguém correr 100 metros em menos de 10 segundos, fazer mil gols e ter os mais lindos gols não feitos ou saltar mais de 6 metros é um sonho que torna possível o cotidiano e, com outras palavras, confidenciei que isso faz aquilo que é pó e transitório em nós experimentar por instantes, como num beijo, o eterno.

Fonte: Coluna do Augusto Nunes