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quarta-feira, 9 de maio de 2018

Ter o carro clonado é mais comum do que parece. Saiba como proceder


É importante seguir os procedimentos do Detran para evitar outros problemas


Imagine que você tem um clone que sai por aí curtindo a vida adoidado, infringindo leis e causando prejuízos. Na hora da cobrança, porém, tudo cai nas suas costas. E pior: mesmo com provas de que a culpa não é sua, a burocracia dificulta que você prove sua inocência. É assim que vive, desde 11 de janeiro, Alfredo Gonçalves. O empresário de 68 anos levava uma vida pacata entre a sua casa em Petrópolis e vindas esporádicas ao Rio. Recebia algumas multas por distração, sempre no mesmo trecho da BR-040, e as quitava antecipadamente. Até que começaram a chegar diversas notificações semanais, algumas vezes até mais de uma por dia, de infrações cometidas em lugares por onde nunca havia passado.


Alfredo foi vítima do “dublê”, como é popularmente chamado o golpe do carro clonado. A placa do seu Toyota RAV4, ano 2013, foi copiada e está sendo usada em um modelo igual. Como o RAV4 não teve alterações visuais entre 2013 e 2015, é impossível precisar o ano do utilitário ilegal.  — É o crime perfeito — diz o infeliz proprietário. Coleção já tem 43 multas e 167 pontos na carteira  Esse crime geralmente começa em outro. Um automóvel é roubado de alguém e, depois, os bandidos identificam um automóvel “limpo” com as mesmas características. Para poderem circular sem restrições, copiam a placa. Na maioria dos casos, só a placa é alterada mas, às vezes, chegam a obter uma cópia do documento. 

Em raros casos é feita a remarcação do chassis, por que daria ainda mais autenticidade à falsificação. E, assim, o motorista do clone comete todas as infrações que quiser, mas a punição vai para o dono do carro clonado.  Até o fechamento desta edição, Alfredo já contava 43 multas, que somam 167 pontos na carteira e R$ 10 mil. Como se não bastasse, ele ainda está impossibilitado de licenciar seu RAV4 no ano de 2018, por conta dos débitos pendentes. Seu prazo para vistoria se encerra no fim do mês, o que pode ser mais um problema: a partir daí, o carro original poderá ser apreendido em uma blitz.
Só em 2018, o Detran já fez 143 processos para solucionar esse tipo de problema. O assassinato da vereadora Marielle Franco também teve um clone envolvido: os assassinos usaram uma placa falsa no Cobalt de onde foram feitos os disparos.
E se o cara mata alguém e a polícia vem atrás de mim?— imagina Alfredo. 

De acordo com o Detran-RJ, o proprietário que começar a receber multas de um carro que não é o seu deve procurar primeiro a Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (DRFA) para registrar o caso. Após esse procedimento, a Polícia Civil abre uma investigação para ver se o veículo do reclamante é o verdadeiro. Isso se dá por uma análise de números de chassis, motor e vidros, feita gratuitamente pelos próprios policiais, de acordo com o Detran-RJ. Caso tudo esteja certo, um registro de ocorrência é lavrado, as fotos do carro original são anexadas e o dono recebe um laudo de autenticidade de seu automóvel.  Com o laudo em mãos, o proprietário legal deve levar à polícia cópias das infrações com fotos do clone e, se houver, alguma prova de que seu veículo estava em outro lugar na mesma hora da infração, além de informar diferença de cores, sinais gráficos nas placas e outras características visuais.

Seguindo esses procedimentos, o Detran abre um processo para fazer a troca da placa do veículo original, livrando-o da dualidade. O número do chassis é desconectado do número da placa original e uma nova combinação de letras e dígitos é dada ao proprietário. Um
um requerimento no Detran-RJ com tudo que foi pedido — laudos feitos por um perito particular, fotos comprobatórias e outros diversos comprovantes, numa pilha de papéis que chega a assustar. Nos registros, fica clara a diferença entre os carros. O RAV4 de Alfredo tem um rack no teto, além de dois adesivos bem visíveis na tampa da mala.
Como se não bastasse, há duas multas em um mesmo dia: uma do clone e outra do original... A diferença é que, enquanto Alfredo foi multado na BR-040, em Petrópolis, à tarde, o clone foi multado em Curicica, à noite.   — Tudo bem que o trajeto de 243km entre os radares poderia ter sido feito no intervalo de tempo entre as infrações, mas a diferença fica clara quando comparamos as fotos. Enquanto há dois adesivos bem visíveis no meu carro, o clone tem a tampa traseira completamente lisa — descreve o dono do RAV4 original.

Documento frio passou na Lei Seca
Apesar de estar entre os procedimentos para a conclusão do laudo pericial do veículo, o Detran-RJ não considera “sinais gráficos nas placas ou outros elementos visuais entre os veículos, se houver”, como provas da diferença. Assim, o primeiro pedido de Alfredo foi negado e arquivado, mesmo com toda documentação atendendo à resolução Nº 670 do Contran, em vigor desde 18 de maio de 2017, para a troca de placas de veículos clonados.
No despacho do Detran-RJ, o corregedor diz que o Contran não disciplinou os critérios para comprovar clonagem. Afirma ainda que, baseando-se na Portaria 4033 de 2009, e após a análise dos documentos que compõem o processo, não foi possível detectar elementos que permitiriam a troca de placas. 

A Portaria 4033 só leva em consideração a marca, o modelo e o ano de fabricação, ignorando quaisquer outras diferenças entre os veículos, caso do rack e dos adesivos.
— Em estados Minas Gerais e Ceará, a resolução 670 do Contran já é aplicada — afirma Alfredo. Entre todas as multas do clone, uma chama atenção em especial: numa operação Lei Seca, o motorista não soprou o bafômetro, foi autuado, mas conseguiu a liberação do RAV4. 

Ou seja: além da placa clonada, o criminoso também conseguiu documentos convincentesem cada blitz da Lei Seca há um posto móvel do Detran-RJ, que confere toda a papelada entregue. O problema, portanto, é bem maior do que uma mera confecção de placas: a emissão de documentos falsificados. Uma divergência atrasou a solução do problema. Enquanto Alfredo afirma que comunicou ao Detran-RJ sobre a tal multa da Lei Seca recebida pelo clone de seu RAV4, o órgão informa que não tomou ciência do fato.

Após ter seu pedido de troca de placa recusado, Alfredo apelou à ouvidoria do Detran. Ontem, o órgão pediu as imagens da blitz à Secretaria de Governo do Estado, que é responsável por filmar todas as operações. Assim, a vítima terá mais provas para comprovar o golpe. Se as imagens forem enviadas e tudo ficar comprovado, um problema que se estende por quatro meses será resolvido. O caso caminha para um final feliz, mas deixa evidente que é preciso melhorar a comunicação e os procedimentos para ajudar quem é vítima de clonagem. Em resumo: quem passar por essa situação deve procurar o Detran e seguir os passos indicados pelo órgão. E munir-se de muita paciência.


O Globo