Cristiano Romero
A ideia de estabilidade no emprego no serviço público é tão disseminada que os empregados de estatais gozam desse privilégio sem nenhum amparo na lei
Embora o governo Bolsonaro tenha demonstrado até agora pouco interesse
na reforma administrativa, o tema ocupou o debate e é parte da agenda do
Congresso Nacional. A reforma é necessária e a justificativa vai além
da premente questão fiscal. No conceito mais amplo, de mudança radical
na forma como o Estado brasileiro está estruturado, as mudanças não
dizem respeito apenas aos servidores públicos, mas a todos os setores
específicos da sociedade que se beneficiam do orçamento público, em
detrimento dos interesses difusos.
A máquina pública brasileira não foi pensada para defender os interesses
de quem não possui representação política em Brasília. Mas, mesmo quem
tenha essa agenda - seja um político, seja um movimento, seja uma
entidade da sociedade civil -, não é o ideal porque, na luta
democrática, esses serão apenas mais um grupo de pressão. Distribuição
de renda, acesso gratuito a serviços de saúde e educação, combate à
pobreza e auxílio a indigentes, por exemplo, não deveriam ser bandeiras
de grupos de pressão nem de partidos políticos, mas missões do Estado
brasileiro em todas as esferas, como prescreve a Constituição de 1988.
As dezenas de milhões de brasileiros inalcançados pelos aspectos
civilizadores da Constituição não deveriam depender nem de governantes
sérios nem muito menos, portanto, de populistas. Nem sempre elegemos os
melhores governantes e, por isso, boas políticas são descontinuadas.
Populistas são perversos porque prometem o que não podem, dão agora o
que não será mantido adiante, apenas para iludir os eleitores e
manter-se no poder.
O correto é que as instituições do Estado atendam a todos de forma
neutra, independente, automática, impessoal, desvinculada de qualquer
propósito político. A reforma do Estado não se explica apenas pela
necessidade de se atender melhor ao público, mas de mudar totalmente as
prioridades da máquina estatal, de forma que suas missões precípuas
sejam levar serviço público a quem não o tem, formar cidadãos, igualar
oportunidades, reduzir as desigualdades, garantir segurança pública à
maioria (que não dispõe de recursos para viver em condomínios), proteger
brasileiros que vivem em áreas controladas por organizações criminosas e
milícias, assegurar segurança alimentar a quem não a tem etc.
Cabe aos políticos, cada qual com sua orientação ideológica, defender um
modelo de Estado, mas sem que lhe seja possível impedir o cumprimento
do que está na Constituição. O Brasil é desigual porque o orçamento
público, desde sempre, destina mais recursos aos ricos, aos grupos mais
influentes, às elites de todo tipo. No orçamento de renúncia fiscal da
União, superior a R$ 300 bilhões por ano, é possível ver a lista dos
beneficiários e chegar à triste conclusão de que mesmo quem não precisa,
como o titular desta coluna, representante da classe média, tem direito
a vantagens que fazem muita falta à maioria pobre.
Políticos devem ser julgados por seus eleitores pelo que contribuem para
o avanço do país como civilização, mas não porque, num dado momento, se
apresentam como representantes dos pobres em Brasília. A rigor, essa
categoria não existe. Os partidos de esquerda, por exemplo, defendem
políticas que, na prática, concentram ainda mais a renda. Ao rejeitar,
por exemplo, as reformas da Previdência e agora a administrativa, por
causa de seus vínculos com sindicatos do funcionalismo federal, a
esquerda impede a possibilidade de o Estado combater as desigualdades.
Nenhum governo, desde a redemocratização, propôs uma reforma do Estado
que não discutisse somente ou tão somente o tamanho dos gastos com os
servidores. Na verdade, o tema só aparece quando há urgência fiscal -
foi assim nos governos Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994),
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e no atual. A questão fiscal tem o
mérito de motivar a equipe econômica do governo federal, preocupada com
o equilíbrio das contas públicas, e também prefeitos e governadores, em
que a escassez de recursos é maior.
A Constituição, a despeito do mérito civilizador de muitos de seus
dispositivos, criou incentivos errados no que diz respeito ao
funcionamento do Estado. Talvez, o pior tenha sido assegurar a todos os
servidores públicos estabilidade no emprego, e não apenas às carreiras
típicas. A alegação é que, sem estabilidade, os funcionários estariam
sujeitos a vicissitudes impostas por políticos, favorecendo a corrupção e
o desvio do Estado de suas funções.
Se o objetivo era esse, a estabilidade não funcionou, afinal, escândalos
de corrupção sucedem desde então com a participação de servidores e,
portanto, sem que os malfeitos sejam prevenidos. A ideia de estabilidade
no emprego no serviço público é tão disseminada que os empregados de
estatais gozam desse privilégio sem nenhum amparo na lei. Quando um
governo decide demiti-los, eles vão à Justiça e ganham o direito de
voltar, não importando se a demissão foi por incompetência, falta ao
trabalho, fechamento da empresa etc. [atualizando: a corrupção que tem assolado o Brasil, com crescimento exponencial no período 2003 a 2016, foi comandada, organizada, em sua maior parte por 'funcionários públicos' não cobertos pela estabilidade constitucional e sim eleitos ou nomeados - nas duas opções, não contemplados pela estabilidade constitucional que pretendem acabar - tanto que o Il Capo de Tutti Capi era o presidente da República, porto que continuou ocupando com a conivência de sua substituda, resultado no período 2002 a 2016.
O servidor público, aquele que 'carrega o piano', este precisa de estabilidade para quando em suas atividades decidir conforme a lei e não conforme a vontade do chefe.
Já o funcionário das estatais não necessitam de estabilidade já que as funções que exercem não são carreiras que exijam independência.
Não podemos olvidar que até empregados de sociedade de economia mista gozam do beneficio da estabilidade - exemplos em perguntas: - qual o motivo de um funcionário do Banco do Brasil - um caixa, por exemplo - precisar de estabilidade?
- qual a necessidade de um gerente da Petrobras ter estabilidade?]
O argumento de que a indemissibilidade protege o patrimônio público é
falso como uma nota de R$ 3. Na Petrobras, o enorme esquema de corrupção
que desviou R$ 20 bilhões foi arquitetado e conduzido por funcionários
de carreira. Logo, não é a exigência de concurso nem a estabilidade que
dão ao serviço público garantia contra a malversação de recursos
públicos e o desvio de suas missões. A mudança passa pela redefinição do
papel do Estado não só na economia, mas em todos os aspectos da vida
nacional. [alguns funcionários de carreira, por estarem na carreira, mas, admitidos nas 'brechas legais', dispensados do concurso e todos demissíveis 'ad nutum'.]
Estáveis no emprego, recebendo salários bem mais altos (o que não é um
mal em si), além de vantagens e direitos jamais vistos pela média dos
trabalhadores do setor privado, os servidores públicos se tornaram,
naturalmente, o maior obstáculo à reforma do Estado. Por que abririam
mão de direitos? Este é o problema. Insulados em Brasília, onde a
atividade econômica depende fundamentalmente do serviço público, os
servidores dispõem de poder autóctone para criar benefícios, legislar em
causa própria, estabelecer prioridades de gasto etc. Se considerássemos São Paulo, centro financeiro e produtivo do país, a
síntese do Brasil, seria possível dizer que Brasília é um cidade longe
de São Paulo, mas muito perto do poder.
Cristiano Romero, jornalista - Valor Econômico