O Estado de S. Paulo
Senador faz política, não guerra. E PM não faz greve, faz motim, um crime militar
Policiais militares, armados e encapuzados, fazem greve ilegal,
aquartelam-se e usam mulheres e filhos como escudo. Um senador,
exibindo-se pateticamente heróico, aboleta-se numa retroescavadeira,
ameaça lançá-la contra o quartel, os policiais e suas famílias e leva
dois tiros. Tiros para matar. Típica história em que não há mocinhos e
ninguém tem razão.
Todo o enredo ganha ainda mais dramaticidade pelo momento e pela
simbologia: policial versus político, justamente no mesmo dia em que
emergiu a fala do general Augusto Heleno (GSI) atacando os parlamentares
como “chantagistas” e dedicando-lhes um sonoro palavrão. Como tudo, o conflito no Ceará foi para as redes sociais como Fla-Flu,
com a torcida vermelha aplaudindo o senador Cid Gomes (PDT-CE), que é
oposição ao governo federal e situação no seu Estado e apresentou-se
ensandecido, autoritário e ridículo, dando cinco minutos para os
policiais, ou jogaria a escavadeira em cima de todos.
Alguém entre os policiais grita uma pergunta pertinente: “Qual a sua
autoridade para exigir isso?” E outro alguém dispara uma, duas vezes,
mirando o coração. Não foi para dar susto. Já para a torcida verde, ou verde-oliva, o único culpado, o único alvo, é
o senador cearense, irmão do também destemperado Ciro Gomes (PDT), um
dos adversários do presidente Jair Bolsonaro em 2018. Quem atirou agiu
em “legítima defesa, para salvar vidas”. Um tiro perfurou o pulmão e o
outro, a clavícula, mas o time acha pouco. “Tinha de ser no meio da
testa”, diz um torcedor.
De cabeça fria, olhando a Constituição, ninguém ali merece torcida nem
perdão. Não existe greve de categoria armada. É motim, não greve;
questão militar, não sindical. Como, aliás, destacaram as Forças Armadas
quando o então presidente Lula insistia em tratar a rebelião dos
sargentos controladores de voo como greve de sindicalistas, não como
motim que era. Só quando a coisa fugiu totalmente ao controle Lula
autorizou e o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, fez o
que tinha de ser feito: enquadrou todos eles e botou ordem na bagunça.
Do outro lado, o que dizer de um senador que não tem cargo executivo nem
autoridade para gerenciar greve, muito menos motim, e assume uma
retroescavadeira para jogar em cima de pessoas, ou melhor, famílias?
Seria cômico, não fosse trágico. Seria surpreendente, não fossem os
irmãos Gomes, os valentões de Sobral.
Toda essa história vem num contexto de radicalização política, com o
presidente da República jogando sua retroescavadeira verbal contra tudo e
todos, enaltecendo armas e empoderando as polícias – que, aliás,
conquistaram assentos no Congresso e acabam de receber um aumento de 41%
em Minas Gerais, um Estado quebrado. Aguarda-se agora o efeito, tanto do aumento em Minas quanto dos tiros no
Ceará, em outras unidades da Federação, como Paraíba, já em crise, e o
Espírito Santo, que já passou por isso em 2017, quando PMs jogaram suas
mulheres no teatro de operações para exigir aumentos e vantagens. Sem
segurança, o Estado viveu o caos, com centenas de mortes.
A expectativa, porém, é de que se repita no Ceará o que ocorre em geral
nesses casos, inclusive no Espírito Santo: julga-se daqui, julga-se dali
e nunca dá em nada, com as assembleias [e governadores] também dando cobertura aos
crimes e aos criminosos. Em resumo: policiais cometeram crime, um insano ameaçou jogar uma
retroescavadeira sobre pessoas, um senador foi atingido por dois tiros. E
o que vai acontecer? Nada. A boa notícia é que o governo Bolsonaro e o
governo do PT do Ceará acertaram o uso da GLO, mas tem risco: o
confronto do Exército e Força Nacional com PMs amotinados,
inconsequentes e perigosos. [os PMs sabem que com o Exército Brasileiro a situação é diferente - o Exército, melhor dizendo, as Forças Armadas não entram para perder.Que o digam os terroristas de 64, de 35 e outras datas.
O que o Congresso Nacional tem que resolver urgentemente é a entrada em vigor do 'excludente de ilicitude' - não é justo que jovens, alguns até recrutas, no estrito cumprimento do DEVER LEGAL, executando uma GLO, sejam compelidos ao uso da força e posteriormente sejam responsabilizados criminalmente.]
Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo