No andar de cima a sentença só vale na última instância, no de baixo, fica-se na cadeia sem instância nenhuma
O Supremo Tribunal Federal julgará hoje o habeas corpus de Lula,
condenado pelo TRF-4 a 12 anos de prisão. Por trás e acima desse recurso
está a questão do cumprimento de uma sentença depois que ela passou
pela segunda instância. O tribunal já decidiu nesse sentido, mas alguns
ministros mudaram (ou não mudaram) de opinião, levando a bola de volta
ao centro do campo. Os doutores são todos adultos e sábios. Suas
decisões são finais, e seu argumentos eruditos às vezes são
incompreensíveis.
Na questão da segunda instância, trata-se de decidir se um cidadão
condenado por um juiz, com a sentença ratificada no primeiro nível
superior, deve ir para a cadeia, ou se ele tem direito a continuar solto
até que seja apreciado o seu último recurso. Em juridiquês, o debate é interminável. Na vida real, os 11
ministros do Supremo Tribunal Federal discutem a essência social da
Justiça brasileira. Essa questão só esquentou quando o juiz Sergio Moro
começou a mandar para a prisão a turma do andar de cima. Isso porque no
andar de baixo a história é outra. Quatro em cada dez brasileiros que
dormem na cadeia estão lá sem julgamento algum. São os “sem-instância”
chamados de “presos provisórios”, gente que não tem dinheiro para pagar a
bons advogados. Há 711 mil detentos no país, 291 mil são “provisórios”.
Muita gente torceu o nariz quando o ministro Luís Roberto Barroso
disse que há um velho “pacto oligárquico” na raiz das roubalheiras
expostas pela Lava-Jato. Os pactos oligárquicos são implícitos e
impessoais. Ninguém se apresenta como representante da oligarquia das
empreiteiras, pedindo audiência a um burocrata nomeado pela oligarquia
política. Apesar disso, os pactos do passado são reconhecidos e
estudados, sem ofensas aos mortos. Está nas livrarias “Africanos livres —
A abolição do tráfico de escravos no Brasil”, da professora Beatriz
Mamigonian. Ela contou um aspecto do pacto oligárquico que sustentou a
escravidão no século XIX e expôs a boca-livre da elite do Rio no trato
dos negros contrabandeados que eram capturados pelos ingleses ou pelo
governo.
A coisa funcionava assim: desde 1831, pela lei, seriam livres todos
os africanos chegados ao Brasil. Foram capturados algo como 11 mil
negros, transformados em “africanos livres”, obrigados a prestar 14 anos
de serviços à Coroa, que os terceirizava para os maganos da Corte. Os
concessionários pagavam uma taxa que equivalia a um mês de trabalho do
negro, caso o alugassem para outros serviços.
Mamigonian conta o caso de Felício Mina, que foi trazido para o Rio
em 1831. Em 1844, estava preso e esperava que os ingleses viessem
protegê-lo. Seu concessionário dizia que ele era um ladrão perigoso, por
“altivo”, “jamais disposto a humilhar-se”. Entre 1831 e 1835, o concessionário de Felício explorou um plantel
de 15 “africanos livres”. Ele se chamava José Paulo Figueroa Nabuco de
Araújo, nada a ver com o pai de Joaquim Nabuco. Talvez algum dos 11
ministros de hoje se lembre dele, pois era titular do Supremo Tribunal
de Justiça e escreveu uma “Coleção cronológica das leis do Império do
Brasil”. Talvez o doutor não soubesse, mas fazia parte do pacto
oligárquico e usufruía dos seus benefícios. (Jornalistas também tinham
acesso ao mimo dos negros.)