O
dia 9 de novembro marca o aniversário da queda do Muro de Berlim. Por anos, esse muro foi a
materialização de uma realidade que se tentava manter oculta para o resto do
mundo – a adoção deliberada de repressão, patrulhamento, escassez, fome,
perseguição e extermínio como políticas de Estado nos países comunistas. As notícias enviadas do outro lado da
Cortina de Ferro eram aterradoras. Os vinte e seis anos da queda desse muro
da vergonha deveriam ser motivo para manter viva a memória de todas as
tragédias, coletivas e particulares, provocadas pelo comunismo. Mas há quem
prefira, ao contrário, louvar a ideologia mais mortífera do século XX.
Universidade
Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) e a Universidade Federal Rural do
Semi-Árido (UFERSA) promoverão, entre os dias 18 e 21 de novembro, um seminário de
comemoração da Intentona Comunista. A Intentona, também conhecida
como Revolução Vermelha de 1935, foi uma tentativa de golpe contra o presidente
Getúlio Vargas levada a cabo pela Aliança Nacional Libertadora, organização de
matiz socialista liderada por Luís Carlos Prestes – que havia, na década de
1920, liderado outra revolta, de caráter tenentista, conhecida como Coluna
Prestes. De acordo com o portal da UFRN, a Intentona ensejou grande repressão
por parte do governo Vargas e “o início de um anticomunismo ainda muito
presente na sociedade brasileira”. A historiografia oficial nos conta que o
objetivo desse movimento golpista era derrubar Vargas. No entanto, a Intentona
começou a ser gestada muitos anos antes de Getúlio assumir o poder.
REVOLUÇÃO
TIPO EXPORTAÇÃO
Com a vitória da
Revolução Bolchevique de 1917, a liderança do Partido Comunista Russo, então
liderado por Vladimir Lênin, enxergou a premente necessidade de organizar
formalmente os esforços de todos os partidos comunistas do mundo para promover
a revolução global. Desse modo, em 1919, foi criada a Internacional Comunista
(Comintern) com o objetivo de concertar esforços, táticas e ações dos partidos
comunistas de todo o mundo com o objetivo de tomar o poder em seus respectivos
países e neles implantar a ditadura do proletariado.
Comintern, teoricamente, pautava-se pelo
chamado “centralismo democrático”, onde questões programáticas eram objeto de
discussão dos grupos internos da organização comunista. Na prática, esse
princípio de organização leninista, que fingia ser uma espécie de fórum democrático
em que debates abertos orientavam as diretrizes dos partidos comunistas, era
falso: tudo era decidido pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) – e,
em última instância, por seus homens fortes.
Em 1922, entre os dias 5 de
novembro e 5 de dezembro, ocorreu em Moscou o IV Congresso Mundial do
Comintern. Partidos comunistas de 58 países enviaram delegados, sendo 343 o
número de delegados votantes. Sob a presidência de Lênin e Leon Trotsky, o IV
Congresso contou com a presença de personalidades comunistas importantíssimas,
como o italiano Antonio Gramsci. No entanto, um dos destaques do congresso foi
um ilustre desconhecido: Antônio Bernardo Canellas, delegado do Partido
Comunista Brasileiro (PCB). Canellas ficou famoso no contexto do IV Congresso
por pedir um aparte no meio de um discurso Trotsky – o chefe do Exército
vermelho chamaria o brasileiro de “o fenômeno sul-americano”.
O POTENCIAL
COMUNISTA DOS TRÓPICOS
Durante o IV Congresso do
Comintern, Canellas apontou a necessidade da criação de um órgão que tratasse
especificamente da América Latina. A proposta foi submetida a votação, e contou
com o entusiasmado apoio de Antonio Gramsci. Surgiu, assim, o Secretariado
Latino do Comintern, submetido à autoridade do recém-criado Comitê Executivo da
Internacional Comunista (CEIC). Em 1925, ocorreu o V Congresso do Comintern, do
qual surgiu o Secretariado para a América do Sul, com sede em Buenos Aires.
Seu principal órgão era o
Escritório de Propaganda do Comintern para a América do Sul, chefiado por Abilio
de Nequete, fundador e primeiro secretário-geral do PCB. Em 1927, saía a
primeira edição do La
Correspondencia Sudamericana, jornal do Secretariado para a América
do Sul, cujo editor era o argentino Rodolfo Ghioldi. O VI Congresso do
Comintern ocorreu em julho/agosto de 1928. Com o relato do sucesso das
atividades do Secretariado para a América do Sul, foram eleitos sete membros
latino-americanos para o CEIC – dentre eles, Rodolfo Ghioldi e o brasileiro
Astrojildo Pereira, membro-fundador do PCB. Essa eleição dava proeminência
considerável ao secretariado, o que representava a importância da América
Latina para o Comintern e, portanto, para Moscou.
Nesse ínterim, Prestes havia
liderado seu frustrado levante dos anos 1920 e, junto com outros revolucionários,
exilou-se na Bolívia. Em 1928, conheceu Ghioldi, sendo recrutado pelo argentino
para as fileiras do Comintern. A partir desse ano, passou a receber
treinamentos específicos para a organização de uma revolução comunista no
Brasil. Em 1930, retornou para o País, instalando-se clandestinamente em Porto
Alegre.
No ano seguinte, a convite do
governo soviético, mudou-se para Moscou, onde sua formação ganhou profundidade
e amplitude. Sua importância estratégica para o Comintern era tamanha que, ao
voltar para o Brasil, em 1934, veio acompanhado de dois importantes agentes da
Internacional Comunista: os alemães Olga Benário (que, depois, seria mulher de
Prestes) e Arthur Ernest Ewert, oficial da NKVD (serviço secreto que precedeu a
KGB).
O
“CAVALEIRO DA ESPERANÇA” CONTRA-ATACA
Em agosto de 1935, ocorreu o VII Congresso do Comintern, o último antes de sua
dissolução. Georgi Dimitrov, Secretário-Geral do CEIC, determinou, dentro da
estratégia de “frentes populares” – organizações de massa de caráter
teoricamente anti-fascista –, que o PCB apoiasse a criação da Aliança Nacional
Libertadora (ANL) tendo, por presidente, Luís Carlos Prestes. O papel da ANL
seria o de promover uma sublevação armada no Brasil que tinha por objetivo a
implantação de uma ditadura do proletariado a soldo de Moscou.
Para tanto, era necessário
organizar um discurso de caráter nacionalista e anti-varguista que, em seu
bojo, carregasse bandeiras sociais que pudessem ludibriar o povo brasileiro e
atrair sua simpatia – reforma agrária, abolição da dívida externa, etc. No
mesmo congresso, Prestes foi eleito membro efetivo do CEIC, e Ghioldi, chefe do
Secretariado para a América do Sul.
A operação revolucionária a
ser liderada por Prestes e encampada pelo PCB teria como principais pontos de
apoio: o Secretariado para a América Latina; Iumtourg, uma falsa agência de
turismo e casa de câmbio controlada pelo Comintern e sediada no Uruguai, por
meio da qual se poderia criar uma ponte financeira entre Moscou e o Brasil; e
os partidos comunistas de Argentina, Uruguai e Chile.
Todos os agentes envolvidos
haviam sido financiados pelo governo soviético e recebido treinamento militar
especializado. O momento exato do início da revolta armada dependia diretamente
do aval do Comintern. Os detalhes da Intentona
Comunista tomam um livro inteiro – aliás, o jornalista William Waack escreveu o
excelente “Camaradas”, com farta documentação comprobatória. Meu propósito não
é apresentar uma análise profunda e exaustiva desse evento, que, para nossa
sorte, não foi adiante. Almejo, ao traçar um breve histórico das
origens da Intentona Comunista, duas coisas.
A primeira é expor esse
movimento tal qual ele foi – uma tentativa de golpe que tinha por objetivo a
implantação, no Brasil, de uma ditadura do proletariado nos moldes soviéticos e
consolidar um posto avançado da União Soviética no continente americano. A
segunda é suscitar uma pergunta: o que merece ser comemorado, afinal de
contas? É digno de comemoração o aniversário de uma conspiração transnacional
de tomada de poder através da violência armada, orquestrada por um governo que
deixou em seu rastro dezenas de milhões de cadáveres, e que, mesmo fracassada,
foi capaz de exemplos detestáveis de barbarismo e crueldade – como a execução
da garota Elza, uma menina semi-alfabetizada de 16 anos estrangulada à morte a
mando de Prestes?
Celebrar o aniversário da
Intentona Comunista não é apenas um disparate: é um ultraje. E fazê-lo por meio
de instituições federais de ensino superior – o que praticamente confere à
homenagem um caráter de oficialidade governamental – é um ultraje além da
medida. Se há algum exemplo claro e paradigmático de como as universidades
federais brasileiras são ideologicamente orientadas para reproduzir o
discurso hegemônico da esquerda, eis tal exemplo.
Fontes:
– John C. Clews, “As Técnicas
da Propaganda Comunista”. Coleção Problemas Políticos da Atualidade, v. 1, O
Cruzeiro, 1964. 283 p.
– Paul M. A. Linebarger,
“Guerra Psicológica”. Editora Biblioteca do Exército, 1962. 541 p.
– William Waack, “Camaradas”.
Companhia das Letras, 1993. 381 p.
– Sérgio Rodrigues, “Elza, a
Garota”. Nova Fronteira, 2008. 236 p.
– Coletânea de documentos da
Internacional Comunista (1919 – 1943), disponível em Marxists.org.
– Manuel Caballero, “Latin America and the Comintern 1919 – 1943”. Cambridge
Latin American Studies, n. 60, Cambridge University Press, 2002. 213 p.