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terça-feira, 29 de setembro de 2015

Cabeça dinossauro

No Brasil, a palavra 'esquerda' continua o ópio dos intelectuais

Gosto muito do dito latino: “Credo quia absurdum”, ou seja, “creio, mesmo que seja um absurdo”. É a raiz de toda fé, seja em Deus, em uma superstição ou numa ideologia.

Por isso, me pergunto: se os católicos explicam de algum modo sua fé na Santíssima Trindade; se os muçulmanos nos falam que “Só Alá é grande” e detalham no Corão as regras de sua religião; se os evangélicos ensinam seu catecismo, por que tantos intelectuais e artistas brasileiros não nos explicam por que apoiam o Maduro, por que fazem manifestos de apoio à Coreia do Norte, como fez o PCdoB? Como podem ignorar os escândalos evidentes de uma quadrilha de corrupção que está levando o país à bancarrota? Ninguém fala nada? 

Por que se negam a detalhar os caminhos dessa “religião” que professam? Será que não viram a queda do muro de Berlim, o fim vergonhoso do socialismo real? Será que a mistura de leninismo com bolivarianismo que apoiam tem alguma lógica inquestionável que ignoramos? Haverá alguma equação que decifre o emaranhado de suas mentes, algo assim como “penso assim, por isso e por isso, logo...”?

Não; não dizem nada — só apoiam e creem. Será que nos deixam babando de curiosidade porque não querem dar luz aos cegos da “pequena burguesia”? Por isso tento entender seu labirinto de ilações, de deduções, de reviravoltas com que constroem o “Caminho de Santiago” que teimam em percorrer. Em primeiro lugar, eu acho que renegar as evidências é uma maneira de se sentirem portadores de uma verdade inatingível pelos homens comuns. Nos olham com o desprezo de homens superiores.

Para eles é impossível aceitar que o mundo não se molda apenas pelos desejos humanos, mas pela marcha das coisas. Se acham os sujeitos certos de uma História errada. Consideram as provas cabais da roubalheira como armações da “direita” ou apenas as “contradições negativas”, superáveis, passageiras, de um processo histórico que tende para o “bem” de todos. Eles se acham parte de um seleto grupo de apóstolos que resistem às sedições do mercado e do capitalismo — as fontes do “eterno mal”. Nossa alma ibérica rançosa, nosso mal endógeno de patrimonialistas perniciosos são considerados coisas menores.

Para eles, toda a culpa de nosso atraso foi só do “imperialismo norte-americano”, a contradição principal. Eles rejeitam a circularidade da vida, o mistério dos desejos, as mutações da sociedade. Eles acham que a sociedade é um bando de imbecis que têm de ser protegidos contra sua ingenuidade. Por isso, precisam de um guia, seja o antigo Prestes ou hoje o Lula. Temos de ser controlados pelo Estado que tudo vê, como uma divindade ante a qual devemos nos ajoelhar. E não veem que é justamente o contrário — que aqui a sociedade é que mantém vivo um Estado falido.

Eles acham que mudar de ideia é falta de caráter e que macho mesmo não muda. Eles acham que quem quiser alguma positividade é traidor. Por isso, quero entender qual é o caminho que as suas ideias percorrem antes de irromper de suas bocas e de seus sorrisos de mofa, do alto de sua superioridade. Bem... sua fé ideológica pode nascer por antigas humilhações a serem vingadas por um voluntarismo neurótico que prove sua grandeza imaginária. São em geral fracassados e professam essas ideias para ocultar seu fracasso absoluto. A certeza férrea que os habita pretende evitar dúvidas sobre sua ignorância arrogante, sem “vacilações pequeno burguesas”, como eles chamam. A ideologia os conforta. Como sentenciou um dia Nelson Rodrigues: “Só os canalhas precisam de uma ideologia que os absolva e justifique”.

Eles se sentem dentro da linha justa. Os islamitas sonham com o paraíso das 11 mil virgens, eles sonham com um futuro de harmonia, onde todos terão tudo, cada um “dentro de sua necessidade e de sua capacidade”. Como eles não têm poder real (vejam a miséria do PT) inventam um poder paralelo que eles professam. É um “‘sendero luminoso”, é um país imaginário onde habitam, uma ilha da utopia que anda escangalhada mas que um dia (quando?) vai prevalecer. Me fascinam também as contorções acrobáticas que leninistas decepcionados praticam para revitalizar suas crenças. É a turma do “mesmo assim”. Mesmo com essa cagada nacional, preferem se agarrar em palavras de ordem antigas do que reconhecer um fracasso óbvio. Os renitentes intelectuais orgânicos dirão: “O PT está desmoralizado, mas mesmo assim ainda é um mal menor que o inimigo principal: os neoliberais. Sabemos que está tudo uma merda, mas da merda nasce a luz”.

No Brasil, a palavra “esquerda” continua o ópio dos intelectuais. Pressupõe uma “substância” que ninguém mais sabe qual é, mas que “fortalece”, enobrece qualquer discurso. O termo é esquivo, encobre erros pavorosos e até justifica massacres. E eles se sentem “vítimas” da nossa desconfiança de estúpidos que ainda não viram a “verdade”. Eles não querem entender que a miséria do país é uma consequência e não a causa. Eles amam a miséria, a Academia cultiva a “desigualdade” como uma flor. A miséria tem de ser mantida “in vitro” para justificar teorias velhas e absolver incompetência. Para eles, o socialismo é um dogma. Diante dele, abole-se o sentido crítico. É como duvidar da virgindade de Nossa Senhora.

Como podem achar que este pobre povo de miseráveis e analfabetos vai se erguer contra o “neoliberalismo”? Só a loucura explica isso. Antes achavam que a luta de classe era o motor da História. Para eles hoje o motor da História está em uma espécie de “miséria revolucionária”. Não é possível que homens inteligentes não vejam este óbvio uivante, ululante.

Não esqueçamos que a burrice é uma categoria fundamental para entendermos suas cabeças.

O que mais me grila é que não parece se tratar de um período histórico regressivo. Será que é uma crise passageira que, uma vez terminada, o país volte ao “normal’”? Não. É um salto para outra anormalidade sem fim; é uma mudança de estado. Temo que não seja uma doença que passa; talvez seja uma anomalia incurável.


Fonte: Arnaldo Jabor - Coluna em O Globo