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sábado, 16 de março de 2019

‘Esconderijos’ da internet desafiam investigação sobre crimes de ódio

Sob anonimato, integrantes de redes ocultas coordenam assédios virtuais e têm minorias como alvo preferencial. Mesmo com toda dificuldade, número de ações na Justiça acompanhadas pelo Ministério Público Federal cresceram 29% entre 2017 e o ano passado

 O massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo, expõe o avanço de grupos e crimes cibernéticos de propagação de ódio. A participação de uma dessas redes no atentado, que deixou 10 mortos e 11 feridos na quarta-feira, é investigada pelo Ministério Público Estadual (MPE). Ataques virtuais contra negros e mulheres e a incitação de crimes contra a vida são planejados e apoiados em fóruns na internet profunda que celebraram o massacre em Suzano. 
 Entre 2017 e o ano passado, houve aumento de 29% no número de ações na Justiça acompanhadas pelo Ministério Público Federal (MPF) relacionadas a crimes de ódio na internet – os registros passaram de 342 em 2017 para 442 no ano passado. “Tem havido uma intolerância maior e a sensação de que a internet é terra sem lei”, diz a procuradora Fernanda Domingos, do Grupo de Apoio sobre Criminalidade Cibernética do MPF. 

O dado se refere a discriminações na internet por raça, etnia, religião e procedência, como ataques a nordestinos, por exemplo. E o aumento de processos em 2018, segundo o MPF, pode ter relação com o ano eleitoral, época considerada propícia para a propagação de discursos de ódio na web.  Para identificar os agressores virtuais, o MPF apura não só o que acontece na internet superficial, onde estão as redes sociais, por exemplo, como o que ocorre na chamada dark web, a internet com forma de acesso específica para dificultar a identificação de seus usuários. O olhar para as profundezas da internet tem um motivo. “Os criminosos estão se refugiando lá porque é um meio onde o anonimato é mais fácil. Tem havido uma migração para essas redes”, afirma Fernanda. 

Um dos fóruns que comemoraram o ataque em Suzano, por exemplo, migrou em 2018 da internet exposta, em que as páginas podem ser buscadas pelo Google, para a dark web. O MPE apura se usuários desse “chan”, como são chamados os fóruns na dark web, incitaram o atentado. Os “chans” agregam pessoas com interesses comuns que se valem do suposto anonimato garantido pela rede. Uma enciclopédia na dark web enumera os grupos que existem e suas finalidades. Grande parte do compartilhamento de material de pornografia infantil ocorre nesses espaços. 
“São grupos que se validam mutuamente, compartilham valores que ferem direitos humanos e produzem conteúdos criminosos”, diz Juliana Cunha, diretora da ONG SaferNet Brasil. 

No fórum que comemorou o ataque em Suzano, os membros, em geral, são homens jovens. “São recrutados aqueles com dificuldades de inserção social. Os relatos envolvem o fracasso em se relacionar com mulheres, de ter papel social”, diz Juliana. Juntos, promovem ataques virtuais misóginos ou direcionados a outras minorias. “Eles se coordenam e elegem alvos, invadem e obtém informações pessoais, enviam ameaças e chantagens.” A violência pode culminar em atos com mortes, que ganham aplausos dos membros e colocam o grupo em destaque diante de outros na dark web. “É para dizer ‘existo e posso causar um grande estrago’”.  

Até chegar às profundezas da internet é comum, porém, que o envolvimento com atos criminosos tenha começado em redes sociais já conhecidas. “Outros usuários indicam ferramentas e conteúdos e a pessoa vai migrando para ambientes mais restritos. É natural que comecem a acobertar (o crime) e busquem lugares mais seguros”, diz Luiz Walmocyr Jr., especialista em crimes cibernéticos. A operação Darknet da Polícia Federal desbaratou em 2014, pela primeira vez na América Latina, a propagação de pornografia infantil na dark web.  

Entraves
Mas o monitoramento dos grupos é complexo e esbarra em dificuldades até diplomáticas. É comum que os fóruns estejam hospedados em países com os quais o Brasil não têm cooperação. Outra dificuldade é técnica. Peritos e investigadores da PF ouvidos pelo Estado explicam que, nesses ambientes, o IP – “CEP” do usuário na rede – fica coberto por várias camadas de “protocolos”, o que exige trabalho exaustivo para identificar os servidores onde estão as informações. Após o mapeamento, é preciso autorização para acioná-los. Só com o aval judicial é que começa, de fato, a apuração tradicional.