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quinta-feira, 16 de julho de 2020

A armadilha do capitão - Valor Econômico

 Maria Cristina Fernandes 


No enfrentamento com a toga, generais fazem o jogo de Bolsonaro e arriscam reacender temas como a revisão da Lei da Anistia

[Pensamos que a menção a possível revisão da  Lei da Anistia apresenta um "recado" transmitindo uma ameaça.
Sempre bom ter presente que uma eventual, improvável, descabida, até mesmo inaceitável, revisão da Lei da Anistia, ocorrendo  será aplicável aos dois lados.]

Ao mandar o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ligar para Gilmar Mendes para explicar sobre a presença de militares e as ações da Pasta, o presidente Jair Bolsonaro realoca para o colo das Forças Armadas aquilo que o ministro do Supremo Tribunal Federal pôs no seu. Era Bolsonaro que o ministro alvejava ao dizer que os militares estavam se associando a um genocídio. Com as instruções a Pazuello, o presidente deixa claro que é no mesmo balaio de responsáveis pelo pandemônio, ao lado de Supremo e governadores, que pretende colocar as Forças Armadas. [o balaio de responsáveis pelo pandemônio do fracasso no combate ao coronavírus não tem espaço para o presidente Bolsonaro - foi retirado pelo Supremo do comando das ações de combate ao vírus - nem para as FF AA que fazem o possível e impossível fornecendo apoio com os mais variados recursos a outros órgãos que estão na linha de frente combatendo à covid-19 - enquanto o presidente do Senado recorre à Justiça para impedir que recursos dos Fundos Eleitoral e Partidário sejam utilizados no combate à pandemia, sendo atendido com decisão favorável do Poder Judiciário.
O balaio de responsáveis pelo pandemônio está destinado para acomodar governadores e prefeitos como executores das medidas fracassadas e o Supremo como avalista do desempenho dos executores.]

Não é de hoje que as Forças Armadas caem nas armadilhas do capitão. Arma-se um vespeiro. A ameaça [sic] a Gilmar Mendes com a Lei de Segurança Nacional, tese urdida pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, pode fazer ressurgir dois processos, o julgamento dos embargos de declaração na revisão da Lei de Anistia e a incompetência da justiça militar para crimes cometidos por civis em operações de Garantia da Lei e da Ordem e por militares contra civis em situações não relacionadas com o desempenho de suas atividades.

Ainda que a composição do tribunal tenha mudado desde que a revisão da Lei de Anistia foi negada, é improvável que uma nova leitura se forme sobre o tema. A rediscussão do tema, porém, desagrada sucessivas gerações de militares que buscaram, até aqui, virar a página da ditadura. Ainda mais porque se daria numa conjuntura em que um ministro do Supremo, ao saber da cobrança do vice-presidente, Hamilton Mourão, de que Gilmar Mendes tem que pedir desculpas aos militares, reagiu: “Antes ele tem que fazer a mesma coisa pelas homenagens a Brilhante Ustra”. [situações diversas: chamar o glorioso Exército Brasileiro de genocida tem um significado gravíssimo.
Já prestar merecidas homenagens a um  militar que nunca foi condenado  é algo que só merece reparos aos olhos dos que queriam, ou querem, o Brasil nas condições de uma Cuba ou Venezuela.] O clima de radicalização só serve, como se sabe, às milícias digitais bolsonaristas.

Já a incompetência da justiça militar para o julgamento de civis incriminados em GLOs e de militares que atentem contra civis em situações não relacionadas com a farda, é um tema que acende convicções no tribunal, como a do ministro Celso de Mello, e tem Gilmar Mendes como um dos relatores.  Ao se deixar capturar pela armadilha bolsonarista, os militares dificultaram a interlocução em ambos os temas que dormitavam na “diplomacia judicial”. Isso acontece num momento em que a opinião pública, com a anuência do presidente e a provocação do ministro, já começa a associar a farda às tragédias da pandemia.

Se foi Bolsonaro quem atraiu os militares para a armadilha, é Gilmar Mendes quem ameaça virar o trinco. Primeiro o ministro reconheceu o terreno. Pediu audiência com o comandante do Exército, Edson Pujol. Explicou-lhe as decisões do Supremo na pandemia e tentou desfazer impressões de que haveria uma conspiração em curso. [Tudo indica que a visita do ministro do STF não foi exitosa.
Segundo a Revista VEJA, 21 junho 2020, matéria "Gilmar Mendes ouviu do comandante do Exército o que não queria" ] Saiu de lá com a convicção de que daquele quartel não partiriam cabo ou soldado rumo à Praça dos Três Poderes, ainda que Bolsonaro continuasse a bafejar o dispositivo militar.

A prisão de Fabrício Queiroz [Fabrício e esposa estão em prisão domiciliar - que, ao nosso modesto entendimento, nos parece regime pesado, visto que não foram julgados,portanto, não condenados e sequer foram denunciados  e não havia mandado de prisão contra o casal.]  e o cerco sobre o senador Flávio Bolsonaro forçaram o capitão a um recuo tático. Ao mesmo tempo, Bolsonaro colocou o Ministério da Saúde de Eduardo Pazuello para operar na lógica de sua blindagem política. Vai precisar dela na medida em que enfatiza, cada vez mais, a responsabilização dos governadores e do Supremo pelo pandemônio. Essa lógica se operou, inicialmente, pelo congelamento dos recursos do SUS. Em seis meses desde a publicação do plano de contingência para a pandemia, foram executados R$ 12,1 bilhões de créditos extraordinários para o Sistema Único de Saúde, o equivalente a menos de um terço da dotação disponível.

Este valor corresponde a pouco mais de 5% do total pago pela União para o enfrentamento da covid-19. Neste período, de planos de saúde a seguro de bancos, várias rubricas superaram os recursos do SUS. Os dados foram levantados pela procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane Pinto. Foi com este Ministério da Saúde em ação que o Brasil assumiu a vice-liderança na disputa macabra do recorde mundial de vítimas. Quando, ao final do campeonato, Bolsonaro mandar o troféu para a Federação e para o Supremo, terá rearranjado os gastos da Pasta para eleger os prefeitos com os quais pretende reconstruir sua base e se safar do prejuízo.

Depois que a Instituição Fiscal Independente, do Senado, mostrou os primeiros números da sub-execução dos gastos do SUS, em junho, o Ministério Público Federal abriu inquérito para investigar as razões pelas quais a Pasta da Saúde não consegue gastar. Um mês depois, Pazuello baixou portaria para distribuir a municípios um valor (R$ 13,8 bilhões) acima do que havia sido executado até então. Quando esse dinheiro chegar na ponta, não apenas os deputados e prefeitos aliados já terão faturado a distribuição, pelo apadrinhamento de cotas dos valores nas redes sociais, como o Brasil já estará no limiar das 100 mil mortes, com gestores públicos capturados pelos atravessadores de testes, medicamentos, respiradores e equipamentos.

Publicada no dia 1º, a portaria ainda não havia surtido efeito na execução orçamentária. Ontem, já sob o fogo cruzado com Gilmar Mendes e ameaçado de omissão no enfrentamento da pandemia, o ministério registrou uma repentina e extraordinária execução de R$ 5 bilhões desses novos recursos. A captura desses valores por gestões sem coordenação nacional, é um troféu que ninguém tira do Ministério da Saúde. Nada é mais ilustrativo da responsabilidade da Pasta do que a determinação do secretário de Atenção Especializada, Luiz Otávio Duarte, para que os gestores públicos comprem equipamento superfaturado e registrem a queixa no MP.

Ao fazê-lo, Duarte, um dos três coronéis do Exército no secretariado da Saúde, demonstrou não apenas a soberba de quem se considera inimputável em suas ordens, como também o preço de se ter a Pasta nas mãos da itinerância balística dos militares. Além das 60 mil vidas acumuladas durante a gestão militar, alvejou o erário. Houvesse centralizado as compras para posterior distribuição aos Estados, diz Élida, o ministério teria mais condições de exigir o cumprimento de prazos de entrega e de enfrentar as máfias de atravessadores. Isso vale para equipamentos, testes, medicamentos e para a futura vacina. A logística militar faz com que sua distribuição seja, de fato, a operação de uma guerra que só admite o presidente Jair Bolsonaro como vencedor.

 Maria Cristina Fernandes, jornalista - Valor Econômico