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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

“Acho que fui estuprada” - Gazeta do Povo

Bruna Frascolla

A atriz Mônica Martelli

Diz a chamada do site de notícias Uol: “Mônica Martelli revela descoberta no 'Saia Justa': 'Acho que fui estuprada’”. Nas condições normais, a frase “acho que fui estuprada” sai da boca de alguém que ficou desacordado e não sabe o que se passou enquanto isso. O indivíduo que acorde nessa situação deverá correr à delegacia o mais rápido possível, sem tomar banho, para fazer exames toxicológicos e de corpo de delito. O exame toxicológico mostrará se o indivíduo foi dopado, a falta de banho servirá para não apagar vestígios materiais e o exame de corpo de delito é realizado por um legista com a finalidade de averiguar as marcas de lesões no corpo.

 

A atriz Mônica Martelli: “Acho que fui estuprada”| Foto: TV Globo / João Cotta

É possível, também, que o indivíduo tenha ficado nessa situação numa época em que ainda era ingênuo, e só mais tarde venha a suspeitar do que aconteceu. Nesse caso, muito provavelmente todas as provas terão sido apagadas, e, como todos são inocentes até prova em contrário, a vítima pensará duas vezes antes de sair acusando em público. Nada impede, porém, que fique de olho no abusador à solta e que tente descobrir um caso fresco, que possa ser levado à polícia.

Como a atriz Mônica Martelli não se enquadra no primeiro caso, somos levados a imaginar que tenha sido uma revelação de um caso tenebroso guardado nos galpões da memória, daqueles bem suculentos para o jornalismo de mundo cão. Teríamos um escândalo do tipo do de Joanna Maranhão, a nadadora olímpica que acusou o treinador de abusar das alunas e desencadeou uma espécie de Me Too nos esportes.

Mas tampouco era esse o caso de Mônica Martelli a matéria. Ela aprendeu uma definição nova de estupro, raciocinou e – tcharam! – concluiu que talvez tenha sido estuprada. Afinal, ela foi a blocos de carnaval e lá as pessoas dão a língua. Leiamos juntos, para não dizerem que estou inventando: “Mônica Martelli constatou, em bate papo com Splash [do Uol], a violência que sofria diariamente [sic!] nas ruas com a ajuda das conversas no "Saia Justa", programa do GNT […]. O pano de fundo era a campanha "Não é Não!", que foi criada por um coletivo de mulheres em 2017 e que ganhou força no Carnaval. […] ‘Essa forma abusiva como tratam o corpo da mulher é normal para a gente, de nos protegermos com um casaco de moletom para o cara não colocar a língua para fora ou para não ouvirmos piadinhas. Sempre foi normal. A partir do momento que a discussão veio, eu falei, acho que fui abusada. Descobri isso aqui’, explica Martelli.”

Então ficamos assim: se algumas madames com consciência social se sentarem no sofá dos estúdios da Globo e passarem horas reclamando da vida e dos homens, vão concluir que foram todas estupradas, ou abusadas.


Os primórdios da confusão entre fiu-fiu com estupro
Fiz em voz alta uma leitura dramática da matéria do Uol para a minha tia. Ela lembrou que a finada matriarca da família, minha avó, ficou arrasada quando percebeu que não tinha mais cantada quando ela passava em obra. Por conseguinte, usando o léxico das madames da Globo, devo concluir que vovó gostava de ser estuprada ou abusada. Na verdade, eu até me lembro de quando surgiu essa conversa de que fiu-fiu era assédio. Em 2013, apareceu um tal de Think Olga com uma estatística debaixo do braço, dizendo que a maioria das mulheres não gosta de cantada de rua, e criou a campanha “Chega de fiu-fiu”, feita para combater “o abuso”.

Eu me lembro disso justo por causa da vovó, que sabidamente gostava de receber cantada de pedreiro. Se acreditássemos que a maioria das mulheres não gosta de receber cantada de pedreiro, admitiríamos a existência de uma minoria que gosta. A vovó cabia dentro da estatística do Think Olga, de modo que seria forçoso concluir que algumas mulheres gostam de abuso. Abuso deixa de ser algo objetivo e passa a ser aquilo que contraria o gosto da maioria.

No mais, a própria pergunta pode ser ambígua. Creio que a maioria esmagadora das mulheres não leva a sério o pedreiro que dá a cantada na obra; ou, por outra, creio que a vida amorosa do pedreiro não é composta por mulheres que ouviram seu “fiu-fiu” no canteiro, mas sim por mulheres que ele conheceu enquanto dançava coladinho ao som de Marília Mendonça. As mulheres não gostam da cantada em si mesma do pedreiro, mas sim do fato de saberem que movimentam a obra. Se um instituto fizesse em 2013 a pergunta “Você gosta de passar na obra e não ouvir nem um fiu-fiu?”, eu aposto que a maioria esmagadora das mulheres diria que não. A falta de cantada nas obras serve mais para marcar que a mulher está tão atraente quanto um pedaço de tijolo – daí a natural desolação da vovó.

Mas as obras estão bem menos assanhadas do que nos idos de 2013. Agora, se a feminista passar por uma obra e escutar o silêncio, pode chamar isso de empoderamento. Eis uma conquista.


 Agora é bonito ser vítima
Uns anos atrás, as feministas falavam que as vítimas de estupro precisavam ser encorajadas a superar a vergonha para poderem denunciar. E é verdade: dificilmente uma vítima de estupro sairia por aí trombeteando a própria violação. A causa dessa vergonha, porém, não é o machismo. A despeito da própria inocência, as pessoas decentes têm vergonha de passar por situações degradantes. Sobreviventes de guerras não têm prazer em contar que reviraram lixo para encontrar comida. Essa situação é degradante. Hannah Arendt dizia que Primo Levi tinha inventado tudo, porque quem passou por campo de concentração não quer falar sobre o assunto. Estupro é degradante. Isso basta para as vítimas terem vergonha de saírem contando por aí.

É fácil pensarmos em outro motivo importante: pena pode ser um sentimento benigno em si mesmo, mas ser olhado com pena diminui a autoestima de qualquer um. Há quem esconda câncer por esse motivo. Como é possível que de repente seja bonito sair se dizendo estuprada? Só mesmo com uma considerável mudança cultural. É bem o que vemos no nicho lacrador da sociedade, onde reina a celebração das vítimas.

É um problema bem sério a falta de discernimento entre o que é estupro e o que não é. Por um lado, fomenta acusações falsas que podem acabar com a vida de um homem e que sobrecarregam inutilmente as forças policiais e, por outro, atrapalha as vítimas reais de estupro, que precisam de clareza, informação e polícia.

Desigualdade entre os sexos
Por fim, cabe notar que esse é um problema prevalente entre mulheres. A base natural da moralidade humana impediu que os homens aderissem tanto a esse comportamento. Evolutivamente, é um problema no mercado sexual os homens ostentarem fraqueza. Já as mulheres, não. Podem posar de donzelas indefesas à vontade, que vai ter homem que vai achar bonito. Só tem é que tomar cuidado para não parar na cadeia.

Bruna Frascolla, colunista - Gazeta do Povo - VOZES