O antropocentrismo vai, aos poucos, enfraquecendo, apesar do mundo institucional
O Supremo Tribunal decidiu que o sacrifício de animais em cultos
religiosos afro-brasileiros é constitucional. Foi por unanimidade. E
isso me decepcionou um pouco. Esperava uma corrente mais crítica ao
antropocentrismo e sensível à dor dos animais. Esses ventos ainda não sopram na Justiça brasileira. Mas já chegaram
aqui da Argentina. Foi o caso de um habeas corpus concedido à chimpanzé
Cecília, que visitei no Santuário dos Grandes Primatas, em Sorocaba.
Cecília vivia triste e maltratada num zoo, mas ao chegar ao Brasil
recuperou a alegria e até acasalou. Fiz um documentário sobre sua sorte.
Na mesma época entrevistei o escritor Peter Singer, autor do livro
Libertação Animal, lançado em 1975, um texto inspirador do movimento
moderno de defesa dos bichos. Singer estava exultante com a libertação
de Cecília. Ele via ali os primeiros lampejos da aceitação de sua tese
sobre os direitos dos animais. Na vida cotidiana sabemos que essa é uma bandeira de minorias. E como
tal precisa ser tratada com habilidade para atravessar a bandeira de
ironia que se ergue diante dela.
Foi assim, por exemplo, que vi em Santa Catarina o movimento que
criticava a Farra do Boi. É uma festa popular, tradicional na costa
catarinense, onde para, os pescadores, o boi aparece como um invasor. A
ideia na época não era acabar com a Farra do Boi, mas, na medida do
possível, ajudar a transitá-la do boi real para um boi figurado, como,
por exemplo, no Bumba meu Boi. Creio que haveria uma possibilidade de argumentar com adeptos dos
rituais de origem africana. Será que o sacrifício de animais é essencial
para sua existência? Assim, como um leigo, posso afirmar que um dos
mais belos rituais religiosos, envolvendo milhões de pessoas, são as
oferendas a Iemanjá. Flores, quase todas flores. Na Baixada Fluminense
documentei inúmeros trabalhos religiosos, nem todos usavam animais e,
quando usavam, eram apenas uma parte das oferendas.
Creio que na própria religião afro-brasileira estão contidos os
elementos que poderiam facilitar uma transição do corpo animal para o
símbolo. Uma transição que a cultura popular brasileira, com suas
representações do boi, já realizou. Falei com um jovem político sobre o tema. Ele me respondeu: “Se me
preocupar com isso, vou denunciar o peru de Natal”. Mas o peru de Natal é
diferente. Ele é comido. Sempre afirmei que a proteína animal ainda é a
maneira de alimentar tantas bocas no mundo. Mais ainda, para desalento
dos vegetarianos, considero que o crescimento da humanidade, que nos
levará aos 9 bilhões de pessoas em 2050, dificilmente dispensará a
proteína animal. Mas o fato de comermos peru no Natal e sabermos que
milhares morrem diariamente não justifica arrancar o pescoço de uma ave
numa celebração mística.
A votação do Supremo lembrou-me de uma coisa: adianta apenas proibir? A
experiência com a Farra do Boi, levei muitas pancadas por causa disso, é
diálogo e compreensão. Mais que uma decisão da Corte, o ideal é uma
transição em que o debate cultural realize o trabalho de suprimir
maus-tratos aos animais. Essa discussão no Supremo foi apenas um momento. Animais morrem
inutilmente em grande escala no Brasil. E a causa, de certa forma, é o
progresso material. Tenho documentando a mortandade dos jegues no
Nordeste. Estão sendo substituídos pelas motocicletas. Morrem
atropelados, abandonados pelos donos na margem das estradas.
Em alguns lugares, como em Apodi (RN), os jumentos foram recolhidos. Um
promotor propôs que as pessoas passassem a comer carne de jegue.
Ofereceu um churrasco. Sua proposta não vingou. Alguns empresários ainda
esperam vender carne de jegue para a China. Na verdade, uma extinção gradual vai tirando os jegues do cenário
nordestino. Isso valeria uma política pública. Assim como o sacrifício
de animais em cultos religiosos merecia um debate mais amplo. Felizmente, nada vai deter o trabalho que se faz no Brasil. O próprio
Santuário de Primatas em Sorocaba é um exemplo internacional. Em Três
Rios há uma pousada que recebe bichos resgatados. A dona adotou uma
jaguatirica que cruzou com uma gata e deu um belo gato mestiço. Na Serra
da Mantiqueira, os chiqueiros estão cheios de filhos de javalis que
cruzam com as porcas de madrugada. O que fazer com os javalis
devastadores?
É todo um mundo girando. Levá-lo em conta ainda é muito difícil numa
cultura em que o ser humana é o centro de tudo. Mas, apesar de decisões
como a do Supremo, é possível dizer que está melhorando. Além disso, as
crianças vêm aí e não são as mesmas do passado. São Paulo já tem um hospital gratuito para animais. Em dezenas de lojas e
restaurantes é possível ver tigelas de água para os animais de rua.
Quando implodiram o presídio da Ilha Grande muitos cachorros fugiram
para o mato. Hoje a ilha é cheia deles. Alguns estrangeiros às vezes
retardam sua passagem pelo País apenas para adotar um cachorro da ilha.
O antropocentrismo aos poucos vai enfraquecendo, apesar do mundo
institucional. Lembro-me das difíceis discussões no Congresso sobre
experiências científicas com animais. Algumas envolvem a salvação de
vidas humanas. No entanto, foi possível um nível de acordo. Acredito que
hoje já exista uma tendência à simulação, fórmulas de cada vez eficazes
para poupar os animais. É uma escolha que transcende a polaridade esquerda-direita: um tipo de
civilização está em jogo. Isso escapa ao próprio governo, preocupado,
corretamente com a morte de 60 mil brasileiros por ano, mas totalmente
perdido nas suas dúvidas sobre aquecimento global, nas suas estúpidas
certezas como dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda. Invadiu a
União Soviética por engano? Milhões de mortes foram resultado de fogo
amigo?
Animais racionais têm cada ideia.
Fernando Gabeira - O Estado de S. Paulo