Sei lá...
Deve ter batido em Lula, assim, uma certa carência, alguma síndrome de
abstinência, uma certa melancolia do isolamento social. E então o diabo soprou
ao seu ouvido esquerdo: -- "Companheiro, fale uma grande bobagem. O Jair
Bolsonaro não pode monopolizar o noticiário com suas sandices, seus
cretinismos, sua dança macabra à beira do abismo do país e aos pés da montanha
de mortos. Nós também temos de dizer alguma coisa. Já faz tempo que a gente não
escandaliza ninguém. Veja, parece que o PT nem existe, que está alheio à crise.
Não pode ser assim".
O anjo
acordou da soneca da quarentena sentindo aquele cheirinho de enxofre que o
capiroto exala quando fala, ouviu tudo, calado, e ponderou: -- Pô, Lula, não
entra nessa, não! O cara tá se estabacando sozinho. Se há alguma coisa
politicamente virtuosa para nós, agora, é isto: ele se queima por conta
própria. Não há uma só dificuldade que ele esteja atravessando que possa ser
atribuída a algo que tenhamos feito. É verdade! A gente aparece pouco. Mas nem
é mesmo a hora de aparecer. Fica parecendo exploração da crise.
Aí o diabo -- vocês sabem: é diabo porque é velho, não porque seja sábio
--, experiente na arte da manipulação, continuou a tentar a orelha do
Companheiro Zero Zero: -- Qual é, Lula!? A gente não tá quieto por estratégia,
mas por falta do que dizer. Não dá para continuar assim, não. Temos de ir pras
cabeças. Vamos rasgar o véu. O neoliberalismo já era. O vírus fez por nós o que
nunca conseguimos fazer sozinhos: provar que, sem Estado, nada se faz. Tá
vendo? A quem recorreram agora? A gente sempre tentou provar que o Estado é
essencial para salvar a humanidade do apocalipse. Taí! Os neoliberais
vituperaram contra as medidas de assistência social, só falam em vender, tudo:
vender, tudo: vender, vender, vender... E olha aí. Imagine se não fosse o Bolsa
Família que você inventou..." — O companheiro diabo tem razão... Lembra o
anjo: -- Lula, nem foi você, né? Você reuniu os programas que havia no governo
FHC e mudou de nome. É verdade. Elevou o atendimento de cinco milhões de
família para uns 11 milhões. Mandou bem!
Aí o rabudo entra em ação: -- Tá vendo? Esse aí nem para reconhecer a
sua grande obra. Ah, lembra aqueles tempos do "nunca antes na história
deste país", quando a gente descia o sarrafo nas elites, ainda que os
empreiteiros e os banqueiros vivessem em lua de mel com a gente? Vamos lá. A
gente falava tudo o que dava na telha. Era uma delícia. Esse negócio do Bozo,
de ficar rimando cloroquina com tubaína é coisa de amador. A gente manda muito
bem quando fala a primeira porcaria que pinta naquela parte do cérebro que dá
traço... O negócio é falar primeiro, Lula, e pensar depois. Você vai ver: vamos
virar manchete na hora.
Prudente, o serzinho alado agitava-se nervosamente: --
Vai dar merda!
E seu oposto: -- Não roube meu vocabulário. Vamos lá, companheiro Lula,
diga a primeira coisa que lhe veio à mente. E Lula disparou: -- Quando eu vejo
os discursos dessas pessoas, quando eu vejo essas pessoas acharem bonito que
'tem que vender tudo o que é público', que 'o público não presta nada', ainda
bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado
coronavírus. Porque esse monstro está permitindo que os cegos comecem a
enxergar que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises. Essa
crise do coronavírus, somente o Estado pode resolver isso, como foi a crise de
2008. O diabo deu uma gargalhada de satisfação: -- Isso! É perfeito! Nem eu
conseguiria dizer melhor! É isto! O vírus veio para instruir a humanidade! A
gente sabe fazer as coisas. Se ficar
irritado, mata todo mundo afogado, sem critério. Tem um chilique, tome chuva de
enxofre em Sodoma e Gomorra só porque viu a turma brincando de pôr aquilo
naquilo... Que é que tem? É bem verdade que deve ter caído um meteoro por lá,
né? Mandou bem. O vírus não acabou com tudo. Matou alguns
milhares só. A anjo desiste: -- Tá bom, Lula. Nem o Bolsonaro fez por si mesmo
o que você está fazendo por ele.
O resto é história. Dada a repercussão da fala do companheiro Zero Zero,
o anjo foi chamado para fazer assessoria de imprensa. E ditou a Lula o seguinte
texto: -- Utilizei uma frase totalmente infeliz, uma frase que não cabia, e se
alguma pessoa ficou ofendida, se algum dos 210 milhões de brasileiros ficaram
ofendidos, todo mundo sabe que a palavra 'desculpa', ela foi feita para a gente
utilizar com muita humildade porque eu sou um ser humano movido a coração e eu
sei o sofrimento que causa a pandemia, eu sei o sofrimento que causa uma pessoa
ver seu parente ser enterrado sem poder sequer acompanhar. Eu acredito piamente
que enquanto não tiver remédio a melhor solução para que a gente evite pegar a
doença ou passar a doença é ficar em casa. Então, se algumas pessoas ficaram
ofendidas, com a frase, eu peço desculpas porque a frase não cabia naquilo que
eu queria falar." Enquanto isso, o diabo conversava com o anjo de Bolsonaro,
se é que me entendem: -- Viu como é fácil?
Reinaldo Azevedo, jornalista - Coluna no UOL
O diabo e o anjo
disputam Lula; chifrudo leva a melhor; Bolsonaro agradece ... - Veja
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