Marcelo Godoy
Cobranças por revisão da lei diminuem com decisão do Supremo e a gestão Bolsonaro
Depois de 40 anos, a Lei da Anistia vive o momento de menor contestação.
Além da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2010, que decidiu
por sua constitucionalidade, a atual correlação das forças políticas no
governo de Jair Bolsonaro (PSL) afasta a possibilidade de sua revisão. Militares e opositores da ditadura ainda consideram as feridas do
período abertas – torturas, mortes e desaparecimentos –, mas não
enxergam espaço, na Justiça ou no Parlamento, para qualquer mudança na
legislação.
Parte do pacto feito pelos militares e pelos civis para garantir a
abertura, a Lei 6.683/1979 considerou anistiados todos os delitos
políticos e os chamados crimes conexos cometidos entre 1961 e 1979.
Excluíam-se da anistia os condenados por terrorismo, sequestro e
atentados, que mais tarde teriam as penas reformadas e, por fim, seriam
anistiados com a Emenda à Constituição número 26, em 1985, que também
convocou a Assembleia Constituinte.
Pretendida pelo governo do general João Figueiredo e promulgada em 28 de
agosto de 1979, a lei foi a 34.ª anistia concedida desde a fundação da
República. Buscava-se, segundo os militares, pacificar e reconciliar o
País. Após dez anos de exílio, o jornalista Fernando Gabeira desembarcou
então no Rio. Houve festa. “A favor da pacificação está o tempo. Com
ele, discutir a anistia fica fora do lugar, pois a polarização de 1964
não existe mais. A guerra fria acabou; só existe na visão de radicais.”
Para Gabeira, o pacto da transição é intocável. “Como fato da realidade
política e como produto da atual correlação de forças, com a eleição de
Bolsonaro, o tema não deve ser reaberto.” Ele diz que festejara à época a
anistia e não vê por que, uma vez mudada a correlação de forças, mudar
de opinião. “Mas respeito quem desejava rever a lei.”
A consolidação da lei é defendida também por um dos parlamentares que a
votaram no Congresso, o então senador Pedro Simon (MDB-RS). “O MDB tinha
o seu projeto de anistia. E o governo, o seu”, conta o senador, que foi
a Nova York com o senador Tancredo Neves (MDB-MG) negociar o apoio do
ex-governador Leonel Brizola para o projeto. “Mas o Brizola defendeu o
projeto do governo, pois temia que o nosso não atendesse aos exilados.”
No Brasil, a luta pela anistia tinha aliados como o Comitê Brasileiro
pela Anistia (CBA), a ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação
Brasileira de Imprensa (ABI). No governo, o projeto era conduzido pelo
senador Petrônio Portela e pelo general Golbery do Couto e Silva. Havia
resistências ao projeto do governo no MDB, conta o então deputado
federal Miro Teixeira (MDB-RJ): “A discussão continuou no partido até
que o Teotônio Vilela (senador por Alagoas) disse: ‘A lei é essa ou não
teremos anistia’.”
A votação na Câmara foi apertada. A oposição e dissidentes da Arena
ainda tentaram aprovar um substitutivo, que garantia uma anistia ampla
irrestrita, mas a proposta acabou derrotada por cinco votos (201 a 206).
Para Simon, a lei “deu um sentido de normalidade à vida pública
brasileira, abrindo caminho até para a legalização dos partidos
comunistas nos anos 1980.” Para Miro, não há um ponto final com a lei.
“As feridas da tortura nunca cicatrizarão para quem foi torturado.” São essas feridas que levam o senador Major Olimpio (PSL-SP) considerar
que se está longo de uma pacificação. “O presidente Figueiredo quis uma
anistia para os dois lados. Esse gesto, até mal interpretado, foi
salutar.” Na época, Olimpio era cadete da PM de São Paulo. “Não me
esqueço, porém, que o capitão Carlos Lamarca matou o tenente Alberto
Mendes Júnior.”
Quem também não esquece é o ex-deputado Marcos Tito (MDB-MG), que teve o
mandato cassado em 1977 com base no AI-5. Ele estava entre os
anistiados. “A anistia não reparou e todas as demais perseguições.” Em dois momentos a lei foi contestada. A primeira vez, quando se tentou
aprovar na Constituinte que o crime de tortura era imprescritível – a
esquerda foi derrotada pelo Centrão. Depois, quando o STF analisou se a
lei estava de acordo com a Constituição de 1988, a Corte decidiu por 7
votos a 2 que a lei tinha validade. “A lei marcou o fim da ditadura. Sabemos que ela dificilmente vai mudar.
Mas, se a Justiça está bloqueada, isso não impede que a luta se faça em
defesa da memória dos que combateram a ditadura”, afirmou o secretário
de Direitos Humanos do PT e ex-preso político, Adriano Diogo.
Marcelo Godoy - O Estado de S. Paulo