Após 60 dias de manifestações, 61 assassinados, mais de 1.000 feridos e centenas de presos, a solução para pacificar o país encontrada por Nicolás Maduro não foi cessar a violência desenfreada, os assassinatos de gente inocente e desarmada, e a realização de eleições livres e diretas, mas a instalação de uma Assembléia Nacional Constituinte (ANC). Mais de 90% da população rechaça essa possibilidade inclusive chavistas, porque crêem que isso seria uma traição à memória do “Comandante Chávez” e à própria Constituição que lhes parece “perfeita”.
No dia 1º de maio Maduro fez publicar na Gaceta Oficial, o Diário Oficial da Venezuela, a criação da ANC utilizando como argumento o artigo 348 da atual Constituição, que diz o presidente da República pode ter a iniciativa de “convocar” uma ANC. Entretanto, ele ignorou propositalmente o artigo anterior que diz que a “decisão” compete exclusivamente ao povo, através de um referendo que Maduro não vai realizar. O anúncio foi feito oficialmente pela reitora do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Tibisay Lucena, informando que 500 pessoas se inscreverão no site do órgão eleitoral, passando por cima do que reza a atual Constituição.
A Procuradora Geral Luisa Ortega Díaz, chavista de primeira hora, foi a primeira a se opor publicamente. Diz ela: “Este é o mecanismo de democracia direta mediante o qual os cidadãos exercem o direito ao sufrágio para decidir acerca de seu acordo ou desacordo com a referida Assembléia, ou a aprovação ou desaprovação de uma nova constituição. Do contrário, seria uma Constituinte espúria”. A ela junta-se o magistrado da Sala de Cassação Penal do Tribunal Supremo de Justiça, Danilo Mojica, que rechaça que os constituintes não sejam eleitos de forma direta, universal e secreta, e sim, como quer Maduro, de maneira setorial e corporativa.
Luisa Ortega tem sido a pedra no sapato de Maduro, mas esse não é o único incômodo que ela tem causado. Ortega tem sido muito incisiva e dura nas denúncias contra o desrespeito aos direitos humanos, acusando diretamente a Guarda Nacional Bolivariana (GNB) pelos assassinatos e violência cometida contra os manifestantes. Em um pronunciamento televisado, Luisa Ortega disse que vai abrir processo contra quem cometeu e está cometendo esses crimes e isso está causando grande alvoroço nos quartéis. Agora os militares já não ficam de cochichos ou troca de mensagens privadas. De tenentes a capitães, alegam que não podem continuar violando a Constituição, que um dia essa situação vai acabar, que pode mudar o governo mas os crimes deles estão sendo anotados e que poderão acabar com longas condenações.
Em pronunciamento em rede de televisão, o ministro da Defesa, general Padrino López, diz que nenhum militar cometeu qualquer crime. Entretanto, em privado continua dando ordens para continuar a atacar e reprimir de forma violenta. Em um vídeo que vazou pelas redes sociais [1] ouve-se a ordem de convocar franco-atiradores para fazer o trabalho sujo, de modo que a GNB não possa ser vista ou responsabilizada pelos crimes cometidos. A maioria dos assassinatos deu-se por tiro na cabeça ou por disparo de bombas de gás lacrimogêneo diretamente no tórax das vítimas. Mas quem dispõe de armas, precisão nos disparos e bombas de gás lacrimogêneo senão os agentes do governo?
O povo continua nas ruas resistindo bravamente apesar das inúmeras perdas de inocentes e, ao contrário do que imagina o regime ditatorial, a cada pessoa assassinada mais gente vai às ruas prometendo só parar quando Maduro for deposto e preso. E não é só o povo que está lutando pela derrubada de Maduro. Quando o juiz Baltazar Garzón sentenciou o presidente Augusto Pinochet a prisão apoiado no princípio da “jurisdição universal”, ele abriu um precedente para que qualquer autoridade judicial de qualquer país possa adotar o mesmo princípio para os delitos de lesa-humanidade. [os artigos da jornalista Graça Salgueiro são excelentes, mas, a menção do juiz Baltazar Garzón - clique aqui e saiba mais sobre o magistrado, falso paladino da Justiça - reduz o brilho da excelente matéria ora transcrita.] Em abril de 2014, 198 legisladores de oito países latino-americanos denunciaram Maduro no Tribunal Penal Internacional (TPI) pela repressão massiva ocorrida naquele ano. Em setembro de 2015 o então Procurador-Geral da República da Colômbia, Alejandro Ordóñez, também o denunciou pelo crime de lesa-humanidade pela deportação massiva e desumana de colombianos que viviam na Venezuela.
Há ainda 19 acusações contra o Estado venezuelano pelo Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias da ONU, que citam ao redor de 30 casos de privação ilegítima de liberdade como padrão sistemático de perseguição política. Se o TPI agir logo e com rigor, Raúl Castro pode morrer como seu irmão Fidel, sem ver esse sonho realizado. Oxalá assim seja.
Fonte: Graça Salgueiro, escritora e jornalista