O Estado de S.Paulo
Armas não podem ficar em mãos de pessoas perigosas e as redes de fake news são isso: armas
[as fake news são nefastas e devem ser combatidas - apenas argumento de combatê-las, não pode e nem deve ser usado como justificativa para combater a liberdade de opinião e de expressão.
Arma mais perigosa é usar - sob o argumento da necessidade de preservar à democracia, à Constituição - práticas não democráticas e que contrariam à Constituição que dizem querer preservar.]
Levante a mão quem nunca teve de desmentir as fake news mais absurdas,
até grotescas, em grupos de família, amigos, às vezes até de trabalho?
De repente, do nada, aquela pessoa que convive com você há anos, que
parece (ou parecia) razoável, antenada e inteligente, passa a
compartilhar mentiras tão primárias e sem nexo que qualquer um deveria
jogar automaticamente no lixo. É como lavagem cerebral, crença
religiosa, negação da verdade. A pessoa perde a racionalidade e entra no
vale-tudo a favor do seu mito e contra os adversários desse mito.
As redes de fake news atingiram uma audácia inaceitável, apesar de não
terem começado com os Bolsonaros – porque o PT também era craque nisso
no poder – nem serem exclusivas do Brasil – porque a eleição de Donald
Trump nos EUA e a vitória do Brexit no Reino Unido são exemplos de como a
internet é usada para transformar mentira em verdade. Se impacta tão
decisivamente a vida, o voto e as eleições, pode mudar o mundo. E para
pior. Depende de quem tenha mais dinheiro, recursos tecnológicos e falta
de escrúpulos.
Assim como é fundamental distinguir “democratice” de democracia, é
preciso evitar a confusão entre liberdade de expressão e de opinião, [inclusive tendo presente que para uma opinião se tornar conhecida precisa ser expressa o que implica em necessitar da liberdade de expressão.
Liberdade de opinião sem liberdade de expressão não existe -a opinião ficará apenas no pensamento, por enquanto ainda permitido.
Apesar de expressar um pensamento, sob a ótica de algumas autoridades, já estar se tornando crime.
Pensar, dependendo do pensamento, pode ser pecado. Mas, expressar um pensamento não pode jamais ser crime - exceto se a forma de expressão utilizada configurar uma prática de um crime.] de
um lado, e agressão e mentira, de outro. Não uma mentirinha inocente,
mas uma arma feroz contra a verdade e a realidade, para propaganda
enganosa, destruição de biografias e até ameaça à segurança física de
cidadãos e autoridades. Armas, de qualquer espécie, não podem ficar em
mãos de pessoas perigosas, de instinto criminoso.
Uma coisa é censura, proibir a opinião, a livre manifestação. Outra é o
ministro do Supremo Alexandre de Moraes bloquear contas usadas como
armas para espalhar o ódio, criar realidades paralelas, confundir
incautos, destruir reputações, disparar injúria, calúnia, difamação e
até convocação para estuprarem filhas de ministros do Supremo. Moraes
não concluiu nada disso da cabeça dele, mas, sim, com provas concretas,
cópias de mensagens e dados sobre contas reais e inventadas, inclusive
levantados pelo próprio Facebook.
Alvo de um furioso ataque em massa e acusado criminosamente até de
pedófilo pelas redes que são alvo de Alexandre de Moraes, o youtuber
Felipe Neto deu uma entrevista à GloboNews, no domingo, condenando o
“momento de validação do negacionismo e do obscurantismo” e comparando
os autores desse tipo de ataque a “ratos que saíram do esgoto, de forma
violenta e grotesca”. E ele também fez questão de destacar: “Não estou
falando de opiniões divergentes, sim de negacionistas científicos,
péssimos revisionistas históricos, pessoas que intencionalmente
deturpam, manipulam e negam o que a ciência diz”. O bom da história é que, como no mundo todo, o Brasil também debate
intensamente a liberdade de expressão e a internet, na mídia, na sociedade, no Congresso e no Supremo, que, aliás, tem um segundo
semestre bem animado pela frente. Um semestre que começou ontem, com o
ministro Edson Fachin suspendendo o compartilhamento de dados da Lava
Jato com a Procuradoria-Geral da República (PGR). A decisão confirma o
que previmos aqui: os absurdos do governo Bolsonaro uniram o Supremo, os
ataques à Lava Jato vão desunir.
E é assim, desunida e com pauta quente, que a Corte vai se posicionar
quanto ao falso dilema entre fake news e liberdade de expressão, além de
passar por uma dança de cadeiras. Em setembro, a presidência vai de
Dias Toffoli, tido como ministro mais próximo de Bolsonaro, para Luiz
Fux, considerado o mais suscetível às pressões da opinião pública. E, em
novembro, sai o supertécnico Celso de Mello e entra o primeiro ministro
da lavra de Bolsonaro. Só “terrivelmente evangélico” ou também
terrivelmente bolsonarista?
Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo