A covid-19 avança, mas o tipo de crise de que Bolsonaro gosta é outro. Melhor não alimentá-lo
O objetivo não era esse, mas o ministro do Supremo Alexandre de Moraes
pode ter salvo, ou ao menos aliviado, o presidente Jair Bolsonaro no
processo em que é acusado pelo ex-ministro Sérgio Moro de investir
contra a autonomia da Polícia Federal para obter informações sigilosas e
interferir em processos autorizados pelo próprio Supremo. Até onde se sabe, Moro acusa o presidente de “intenções”. Se o ministro
Moraes não tivesse impedido a posse do delegado Alexandre Ramagem na
direção-geral da PF, estariam criadas as circunstâncias para que essas
“intenções” se transformassem em atos – ou não. Sem Ramagem e com o
delegado Rolando Alexandre de Souza na PF, os cuidados serão
naturalmente redobrados para não jogar álcool na fogueira.
Logo, Alexandre de Moraes pode ter obtido o efeito inverso ao
pretendido, dando uma mão para Bolsonaro e evitando que ele saísse do
mundo da vontade para o da execução, caso Ramagem já chegasse reunindo
investigações sobre este ou aquele amigo, este ou aquele inimigo do
presidente e enviando diretamente para o Planalto. A subjetividade teria
adquirido materialidade. Por ora, é a palavra de Moro contra a de Bolsonaro. Os generais Braga
Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno, apontados pelo ex-colega
como testemunhas, não podem nem mentir para a Justiça nem incriminar o
chefe. Basta confirmar que Bolsonaro exigia, sim, trocar o diretor da PF
e ameaçava, sim, demitir o ministro da Justiça. E daí? É atribuição [constitucional] do
presidente nomear e demitir o outro.
Com Moro autorizando a divulgação de seu depoimento de oito horas à
própria PF e ao Ministério Público, pode-se vir a saber e balancear o
que ele entregou. Com 22 anos de magistratura, não seria ingênuo de
fazer acusações pesadas, e justamente contra o presidente, sem provas.
De outro lado, ele teria apagado as conversas pelo celular, preservando
apenas as dos últimos 15 dias antes da queda.
Se for assim, o torpedo mais letal contra Bolsonaro é a mensagem, já
divulgada pela Rede Globo, em que ele reclama de investigações sobre
“dez a doze deputados do PSL” e termina com uma frase bastante
comprometedora: “Mais um motivo para a troca (na PF)”. Mas será que Moro
só tem isso? [Caso só tenha isso, nada tem;
ao que se sabe a mensagem pode perfeitamente ter sido enviada por Bolsonaro para o ex-ministro, para expressar sua preocupação com o que considerava um exagero da PF e aproveitado o comentário da possível exorbitância da Polícia Federal para fundamentar a conveniência da troca que pretendia fazer.]
Como as demonstrações de Bolsonaro contra o STF e o Congresso, houve um
consenso contra ele e pró-Alexandre de Moraes. Porém, juristas, o
presidente do Supremo, Dias Toffoli, e os militares do Planalto estão
convencidos de que Moraes extrapolou. E, assim, deu pretexto para
Bolsonaro ameaçar também extrapolar. O risco é crise institucional.
E assim vai-se vivendo, de manifestação em manifestação de inspiração
golpista, embalada pelo presidente da República e pelos símbolos e cores
nacionais e agora com ataques covardes a enfermeiros e a jornalistas,
como os brilhantes fotógrafos Dida Sampaio, do Estado, e Orlando Brito,
um veterano, e ao motorista Marcos Pereira.
A cada provocação de Bolsonaro e de bolsonaristas, o Ministério da
Defesa tem de acertar o tom na defesa da democracia sem atacar Bolsonaro
e pregar “a independência e a harmonia entre os Poderes”.
[missão difícil, especialmente diante do convencimento de que Moraes extrapolou e não é a primeira vez que um ministro do STF invade competência do Executivo.
O caso do ministro Barroso é outro exemplo de invasão de competência - interferindo na política externa brasileira em relação aos venezuelanos.] Está virando
rotina. O coronavírus atinge mais de cem mil brasileiros e mata mais de 7
mil, mas o presidente não está nem aí. O tipo de crise de que ele gosta
é bem outro. Quanto menos se alimentar, melhor.
Equilibristas
Nos deixaram na segunda-feira, 4, além de Flávio
Migliaccio, o iluminado Aldir Blanc, autor do hino informal da
reabertura política, e o grande político Guilherme Palmeira, que liderou
com Marco Maciel e Jorge Bornhausen a dissidência do regime que se
revelou fundamental para enterrar a ditadura. A morte de ambos traz
memórias e reflexões preciosas neste momento difícil, às vezes
assustador.
Eliane Cantanhêde, colunista - O Estado de S. Paulo