O que de fato é escandaloso é que se ostente a própria ignorância como um tesouro, que se a exiba como algo precioso e que se a defenda como o fim último do homem. O escândalo é ainda maior quando se trata de alguém que, por função da posição que ocupa na sociedade, deveria zelar pela verdade.
E esse é justamente o caso de Jean Wyllys. Vamos aos fatos: @ deputad@ Jean Wyllys (PSOL/RJ) apresentou no dia 24 de março, ontem, no plenário da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 882/2015 (baixe o arquivo digital aqui),que “[e]stabelece as políticas públicas no âmbito da saúde sexual e dos direitos reprodutivos e dá outras providências”.
Dentre outras coisas, o projeto estabelece a legalização da “interrupção voluntária de gravidez” até a 12ª semana de gestação, a inserção de conteúdos relacionados a direitos reprodutivos e educação sexual no sistema de ensino pelo Ministério da Educação e restrições à objeção de consciência por parte de médicos que se recusem a tomar parte nos procedimentos. O conteúdo legal do projeto não é o foco deste texto – do contrário, ficaria muitíssimo extenso e chato, e creio que há pessoas muito mais habilitadas a escrever sobre aspectos jurídicos do que eu –, mas sim a justificativa que compõe o projeto de lei. Para manter a integridade mental dos leitores, copiarei abaixo apenas os dois primeiros parágrafos do texto, mas convido-os a ler o inteiro teor do projeto de lei d@ eminente deputad@ PSOLista. Os negritos, bem como as respectivas numerações entre colchetes, são por minha conta.
A primeira razão para este Projeto de Lei é, na verdade, uma falta de razões: não há justificativa para que o aborto seguro seja ilegal [2] e as mulheres que o praticam, bem como aqueles e aquelas que as assistem, sejam considerados criminosos ou criminosas. Todos os argumentos que, ao longo do tempo, têm sido oferecidos a modo de justificativa para manter a atual legislação não passam de um conjunto mal articulado de mentiras, omissões e hipocrisias [1] cujo efeito se mede, anualmente, em vidas humanas. Vidas indiscutíveis, seja pela ciência, seja pela filosofia, seja pela religião, de mulheres já nascidas. E o único motivo para isso é a vontade de uma parcela do sistema político e das instituições religiosas de impor pela força suas crenças e preceitos morais ao conjunto da população, ferindo a laicidade do Estado. [3]
Vocês devem ter notado que os números dos negritos não estão em ordem. Vamos por partes.
Concedendo ao nobre parlamentar o beneplácito da dúvida pelo seu infeliz comentário no argumento [1], talvez @ deputad@ conheça apenas de nome um único cientista que é freqüentemente citado por aqueles que combatem a descriminalização do aborto: Jérôme Lejeune. O Dr. Lejeune foi o responsável pela descoberta da trissomia do cromossomo 21, mais comumente chamada de Síndrome de Down. Bom, decerto os argumentos contra o aborto de um homem da estatura intelectual e científica do Dr. Lejeune não passam de “um conjunto mal articulado de mentiras, omissões e hipocrisias”.
Afinal, ele era a epítome do opressor: branco, heterossexual, europeu e, o pior dos crimes, católico. No entanto, @ deputad@ talvez jamais tenha ouvido falar no Dr. C. Ward Kischer. O Dr. Kischer é biólogo, PhD em embriologia humana, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade do Texas e detentor de uma farta bibliografia publicada em periódicos científicos de primeira linha. A explicação que o Dr. Kischer oferece, em artigo escrito em 1993, a respeito do começo da vida humana é a seguinte (tradução minha):
A partir do momento em que o espermatozoide entra em contato com o ovócito, sob condições que entendemos e descrevemos como normais, todo desenvolvimento subseqüente até o nascimento de uma criança viva é fait accompli [fato estabelecido].
Isso quer dizer que, depois do contato inicial entre o espermatozóide e o óvulo, não há qualquer momento ou estágio subseqüente que possa ser arbitrado ou esteja pendente da mãe, ou do embrião ou feto.
Também não há uma segunda contribuição, um sinal ou gatilho, requerido pelo macho para continuar e completar o desenvolvimento até o nascimento. O desenvolvimento humano é um continuum no qual os ditos estágios se sobrepõem e se fundem uns nos outros. De fato, toda a vida está contida dentro de um continuum do tempo. Portanto, o começo de uma nova vida se dá no começo da fertilização, o evento reprodutivo que é a essência da vida.
A exposição sucinta do Dr. Kischer, baseada nos estágios Carnegie de desenvolvimento embriológico humano, nos conduz ao argumento 2, que afirma que não há motivos para que o aborto seguro seja ilegal. Seguro ou não, todo procedimento de “interrupção voluntária de gravidez” implica na eliminação de uma vida humana. Portanto, ao menos do ponto de vista legal, encaixa-se perfeitamente no rol dos crimes dolosos contra a vida, uma vez que se trata de algo que se buscou voluntariamente.
A argumentação do Dr. Kischer também nos conduz ao argumento 3. Se você for uma pessoa minimamente educada, que saiba ler e consegue compreender o que está escrito (o que deve ser fato, já que, do contrário, você sequer se daria o trabalho de ler este artigo), você certamente irá reparar que o Dr. Kischer não citou, em nenhum momento, quaisquer premissas morais, filosóficas ou religiosas para defender que a vida humana se inicia na concepção.
Ele não relacionou o momento da concepção com a encarnação de uma alma, por exemplo, nem com a valoração moral do aborto sob a perspectiva de uma divindade ou de um livro sagrado. Diante da clareza do Dr. Kischer e da patente verborragia d@ nobre parlamentar do PSOL, duas são as possibilidades: ou Jean Wyllys é um@ total, complet@ e profund@ ignorante das questões sobre as quais pretende legislar ao propor esse projeto de lei;
ou se trata de um caso puro e cristalino de falta de caráter.
Independente do caso, o que o projeto demonstra é que @ deputad@ tem maior preocupação em defender qualquer ideologia rasa do que se debruçar sobre um assunto complexo e, nele, buscar a verdade. Todo o resto da justificativa é um show de horrores – argumentos requentados que provém desses três primeiros que selecionei, estatísticas obscuras sem indicação de fonte específica, contradições, etc. –, e recomenda-se ao aventureiro que queira desbravar o texto do deputado que se arme de toda a cautela possível – e, talvez, de um bom remédio para o trato estomacal. Não o leia depois de ter comido: os efeitos podem ser desastrosos.
Observação: a designação de gênero ao se referir a Jean Wyllys foi convenientemente substituída pelo “@” para evitar desagradar @ nobre deputad@ e ofender sua respeitável e ilibada figura.