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domingo, 18 de março de 2018

Falsa contradição

A tentativa de transformar o caso Marielle numa bandeira partidária e eleitoral está fadada ao fracasso, ainda que empolgue e mobilize setores da classe média e da juventude

Por causa dos 20 anos de ditadura militar, estabeleceu-se uma falsa contradição entre as políticas de segurança pública, contaminadas por métodos violentos e ilegais herdados da repressão à oposição ao regime, e a defesa dos direitos humanos, bandeira empunhada pelos antigos oposicionistas até como uma forma de sobrevivência. 

Incorporados à Constituição de 1988, de certa forma, esses direitos passaram a ter mais centralidade na atuação das antigas forças oposicionistas do que a defesa das instituições políticas que efetivamente garantiram a redemocratização do país, entre as quais se destacou o Congresso.  A violência generalizada e o colapso da segurança pública no Rio de Janeiro, em parte, são frutos do imbricamento dessa contradição com a corrupção em sucessivos governos e na Assembleia Legislativa fluminense, assim como no Tribunal de Contas do Estado. E não se sabe, ainda, se chegou às entranhas do Judiciário local. Afinal, desde a eleição de Leonel Brizola (PDT), em 1982, foram as antigas forças de oposição que governaram o Rio de Janeiro, ou seja, governos do PDT, do PSDB, do PT e do PMDB.

O fato é que o sistema de poder que controla o Estado foi progressivamente tomado de assalto por políticos e empresários corruptos, a partir de um bunker instalado na Assembleia Legislativa; por sua vez, permitiu-se que o crime organizado se enraizasse no sistema de segurança e se fez vista grossa à ocupação de “territórios” pelo tráfico de drogas, sobretudo nas favelas, e pelas milícias, nos subúrbios. A tentativa de retomá-los pelo Estado, sob a liderança do delegado federal José Mariano Beltrame, com as unidades de pacificação, por ironia e contra seus objetivos, fracassou em decorrência do grau de contaminação do aparelho de Estado, sem embargo da discussão sobre essa política em si.

Especialistas no combate à corrupção costumam usar as cores do trânsito para dividir a burocracia em três categorias: vermelha, formada por corruptos contumazes; amarela, por corruptos eventuais; e verde, os não corruptos. Quando a liderança é corrupta, o amarelo avermelha e o verde pode até amarelar; quando a liderança é incorruptível, o vermelho é que amarela e o amarelo esverdeia. A aposta dos militares que lideram a intervenção federal no Rio de Janeiro é que a mudança de comando no sistema de segurança e sua blindagem em relação aos políticos e empresários corruptos possam ter um efeito regenerador nas polícias Civil e Militar, desde que expurgados os corruptos contumazes.

O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), líder comunitária da favela da Maré e do movimento de mulheres negras do Rio, precisa ser visto em dois contextos. De um lado, a necessidade de ultrapassar a velha oposição entre defesa de direitos humanos e a política de segurança; de outro, deixar em segundo plano a disputa entre governo e oposição na hora de identificar o inimigo no combate à violência. Mais do que ineficaz, responsabilizar a intervenção pela morte da vereadora é burrice política.  Todas as investigações até agora apontam em direção às milícias que operam no Rio, uma provocação com o nítido propósito de isolar, desmoralizar e, se possível, intimidar as autoridades, entre as quais o ministro da segurança Pública, Raul Jungmann, e o comandante militar do Leste, general Braga Neto, o interventor. 

Isso já ocorreu outras vezes, com sucesso. A diferença agora é de correlação de forças, uma vez que essas autoridades, encarregadas de restabelecer a Lei e a Ordem, não estão sujeitas a chantagens. No lugar do aparelho de coerção do Estado tomado pela corrupção, o crime organizado esbarra em instituições que estão a salvo disso, entre as quais as Forças Armadas, o MP e a PF. Ou seja, a provocação pode ter efeito contrário e levar ao desbaratamento da organização criminosa que a promoveu.

Bandeiras
Mas há variáveis culturais e ideológicas que precisam ser enfrentadas. A glamorização da malandragem, o jeitinho, o espírito naturalmente transgressor da população; e o esquerdismo infantil e inconfessável que vê no tráfico de drogas uma espécie de “banditismo social”. A convergência desses elementos leva água para o moinho das forças mais conservadoras, que acreditam no “prendo e arrebento” como forma de resolução dos problemas e até veem nas milícias a força do bem contra o mal. A tentativa de transformar o caso Marielle em bandeira partidária está, por essa razão, fadada ao fracasso, ainda que empolgue e mobilize setores da classe média e da juventude.

O endurecimento das penas e a repressão generalizada ao consumo de drogas não oferecem solução duradoura. Mais eficaz são a educação, o esporte, o empreendedorismo, a legalização do aborto, a recuperação de áreas urbanas e o combate ao comércio ilegal de produtos roubados e aos serviços pirateados. [todas as alternativas apontadas como mais eficaz além de não funcionarem (com exceção do combate ao comércio ilegal de produtos roubados e aos serviços pirateados) - seja em um ano seja em um século, começam eivadas de ilegalidade e até mesmo mais criminosas que o que pretende solucionar:
- o aborto é crime e o que tem que ser feito, dentro do indispensável contexto moralizador, é o endurecimento das penas, tanto por maior período de reclusão quanto por alcançar mais envolvimento em tão covarde e vil assassinato;
- a repressão ao consumo de drogas tem que ser generalizada, com prisão de todos os usuários - afinal sem os noiados, sem os maconheiros, sem os usuários de qualquer espécie e droga, não há demanda e sem demanda não há tráfico;
- o combate de todas as alternativas para obtenção de ganhos ilegais - do quiosque que vende pastéis e também drogas e funciona de forma ilegal, em área inapropriada  ao transporte - ao fornecimento de gás, transporte alternativo, produtos roubados (o crime de receptação deveria ser punido com o triplo da pena atual - só cadeia dura para o receptador desestimula o ladrão, prisão dura para o usuário de drogas desestimula o noiado) precisa ser feito e com penas duras e que devem ser cumpridas.
Progressão de pena, indulto só para quem tiver cumprido no mínimo metade da pena - se reincidente dois terços.]

Saídas radicais, à direita ou à esquerda, são vetores da violência. O que une mesmo é a luta pela paz.

Luiz Carlos Azedo - Nas Entrelinhas