Stálin
foi um louco assassino. Milhão a mais, milhão a menos, eliminou o mesmo número
de pessoas que o líder nazista, e com métodos parecidos
Nem o
bolchevique mais fervoroso estava seguro ao seu lado
Outro dia recordei —sem lamentar—
a morte de Hitler, ocorrida há 70 anos. Hoje falo de outro personagem que compartilhou com
ele o domínio do tabuleiro europeu e que, depois de derrotá-lo na Grande
Guerra Patriótica, desfrutava nessa mesma época do seu momento de máxima
glória. Refiro-me a Iósif Vissariónovich
Stálin; Koba, para os íntimos.
A primeira coisa que se
deve dizer sobre Stálin é que, assim como Hitler, foi um louco; um louco
assassino. Milhão a mais, milhão a menos, eliminou
o mesmo número de pessoas que o líder nazista, e com métodos parecidos: os fuzilamentos e os campos de concentração, com a
diferença de que, nos de Stálin, os
prisioneiros não eram imolados em câmaras de gás logo depois de chegarem, e sim após uma sobrevivência média de cinco anos, quando morriam por causa dos trabalhos
forçados, do frio ou da fome. O
número de reclusos nos “campos de
trabalhos corretivos” (Gulags) superou os dez milhões, e os mortos foram mais de dois milhões.
Esses campos foram criados para
os antigos aristocratas, os kulaks (camponeses
médios opostos à coletivização), o
clero ortodoxo, os delinquentes comuns e, sobretudo, os dissidentes políticos.
Sobre estes últimos, houve 1,3 milhão de
detidos só nos “grandes expurgos”
de 1936-1938, sendo
que 700.000 deles acabaram executados. Ao todo, o número de fuzilados pelo regime stalinista é de pelo menos
um milhão, podendo chegar a quatro
milhões quando são acrescidos os mortos em campos de trabalho e em deportações
populacionais em massa. Dou cifras
conservadoras, as quais alguns historiadores multiplicam por dois ou mais.
Também a
vida privada de Stálin supera a de Hitler em todos os sentidos. Órfão de pai, sempre teve uma má relação com sua mãe, a ponto
de não assistir ao enterro dela; há sérias suspeitas de suicídio tanto de
sua segunda mulher como de um dos seus filhos, e, quando
ele sofreu o ataque fatal, seus colaboradores íntimos deixaram as horas
correrem sem chamar um médico; o próprio Koba havia denunciado “conspirações de médicos”, mas, além
disso, sua morte aliviava a todos.
Sua obsessão
paranoica é comparável à do líder nazista, embora menos racional e
previsível. Um alemão conservador, ariano de quatro costados e respeitoso com o
partido tinha grandes probabilidades de não ser
incomodado pelos lacaios do Führer. Com
Stálin, nem o bolchevique mais fervoroso estava seguro. Pelo contrário,
podia ser detido, torturado, obrigado a confessar delitos imaginários e
finalmente executado. Simplesmente porque Koba sentia
inveja dele. Stálin condenou Trótski como “esquerdista”, e Zinoviev, Kamenev e
Bukharin — que o apoiaram na
operação contra Trótski— como “direitistas”;
Yagova e Yejov, os chefes da polícia secreta, também
caíram... Toda a cúpula bolchevique de 1917-1923, protagonista do
Outubro Vermelho, havia sido eliminada em 1939.
E então,
nesse mesmo ano, lançou-se à sua grande
operação política, prova máxima da sua ausência de princípios morais:
aliou-se a Hitler, seu inimigo jurado, para dividirem a Polônia entre si. A
responsabilidade pelo início da Segunda Guerra Mundial recai, portanto, sobre
ambos, embora depois, quando Hitler atacou seu aliado (que de fato era, já que Stálin nunca rompeu o acordo, embora
possivelmente apenas por falta de previsão), o líder soviético entrasse
para a história como o caudilho do antifascismo e até fosse candidato ao Prêmio
Nobel da Paz. Não vale a pena citar mais
dados sobre a estatura moral do personagem. Assim como seu rival nazista,
sua personalidade é, definitivamente, o de menos. O importante, o que não
deveríamos deixar de nos perguntar nunca, é como pôde aquele sistema colocar a
um monstro desse calibre à sua frente.
Toda
a cúpula bolchevique de 1917-1923, protagonista do Outubro Vermelho, havia sido
eliminada em 1939
A primeira resposta que ocorre é
semelhante à do caso alemão: atribuir isso à tradição
russa; neste caso, ao czarismo, tirania brutal como poucas (embora seu número de vítimas, comparado ao
dos bolcheviques, seja coisa de criança). Ser dominado por um déspota
caprichoso, de quem se esperava a solução de todos os males sociais, era o
habitual para um russo.
Mas há outra resposta, muito
diferente, que acredito ser mais interessante: refiro-me à debilidade política
da teoria marxista, à falta de precauções contra os possíveis abusos dos
futuros dirigentes da ditadura do proletariado, um trâmite obrigatório no
processo de construção do paraíso socialista. Karl Marx, tão penetrante em sua
crítica social, mostrou uma surpreendente ingenuidade política ao embarcar sem
hesitação no trem jacobino: só importava
a tomada do poder pelo proletariado.
Quando isso ocorresse, por que
impor limites ao governo do povo trabalhador? Ele não previu algo
tão elementar quanto o fato de que os representantes do proletariado, ao disporem do poder absoluto,
poderiam usá-lo em seu benefício próprio. Tampouco
Lênin, o verdadeiro artífice do sistema, previu isso. Nem Trótski, um de seus
colaboradores mais cruéis, que só começou a criticá-lo quando foi deslocado
do poder. Stálin limitou-se a aperfeiçoar o modelo montado por Lênin e Trótski.
Marx foi ingênuo ao pensar que só importava a
tomada do poder pelo proletariado. Muito mais pessimistas, e mais lúcidos, os pais do
constitucionalismo norte-americano consideraram óbvio que o ser humano
tende a se aproveitar do poder quando o tem em suas mãos. E a partir daí
montaram mecanismos de partilha de poderes, controles e contrapesos, que
impunham os máximos entraves possíveis aos abusos. O sistema está longe de ser perfeito, mas tem funcionado muito
melhor do que as ditaduras em nome do povo ou do proletariado.
Alguma
moral da história poderíamos encontrar hoje. Os
partidos que procedem da tradição
comunista e não se desprenderam suficientemente de seu passado stalinista estão pagando por isso. Porque são muito
poucos os europeus atuais que desejam viver como os cidadãos da Europa Oriental
nos anos 1945-1989. Como a Igreja
Católica está pagando, há séculos, por seu passado inquisitorial.
Acredita-se vítima de um “laicismo
agressivo”, sem compreender que os cidadãos desconfiam, com razão, que o
clero, se recuperasse o poder de antigamente, talvez voltasse a erigir piras
para imolar quem não comungasse cem por cento do seu ideário.
E tampouco convém
atribuir isso à retorcida personalidade de um Torquemada, e sim a um sistema
totalitário de pensamento e de poder. Instituições com tal passado sujo não
recuperarão nossa confiança enquanto não abjurarem solenemente esse esquema
mental e garantirem, de maneira plausível, que jamais voltaremos a viver
aquilo.
Por: José Álvarez
Junco é historiador. Seu
último livro é ‘Las Historias de España’ (Pons / Crítica, inédito no Brasil).