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quarta-feira, 10 de junho de 2015

Stálin, o outro monstro



Stálin foi um louco assassino. Milhão a mais, milhão a menos, eliminou o mesmo número de pessoas que o líder nazista, e com métodos parecidos
Nem o bolchevique mais fervoroso estava seguro ao seu lado
Outro dia recordei —sem lamentar— a morte de Hitler, ocorrida há 70 anos. Hoje falo de outro personagem que compartilhou com ele o domínio do tabuleiro europeu e que, depois de derrotá-lo na Grande Guerra Patriótica, desfrutava nessa mesma época do seu momento de máxima glória. Refiro-me a Iósif Vissariónovich Stálin; Koba, para os íntimos.

A primeira coisa que se deve dizer sobre Stálin é que, assim como Hitler, foi um louco; um louco assassino. Milhão a mais, milhão a menos, eliminou o mesmo número de pessoas que o líder nazista, e com métodos parecidos: os fuzilamentos e os campos de concentração, com a diferença de que, nos de Stálin, os prisioneiros não eram imolados em câmaras de gás logo depois de chegarem, e sim após uma sobrevivência média de cinco anos, quando morriam por causa dos trabalhos forçados, do frio ou da fome. O número de reclusos nos “campos de trabalhos corretivos” (Gulags) superou os dez milhões, e os mortos foram mais de dois milhões.
 
Esses campos foram criados para os antigos aristocratas, os kulaks (camponeses médios opostos à coletivização), o clero ortodoxo, os delinquentes comuns e, sobretudo, os dissidentes políticos. Sobre estes últimos, houve 1,3 milhão de detidos só nos “grandes expurgos” de 1936-1938, sendo que 700.000 deles acabaram executados. Ao todo, o número de fuzilados pelo regime stalinista é de pelo menos um milhão, podendo chegar a quatro milhões quando são acrescidos os mortos em campos de trabalho e em deportações populacionais em massa. Dou cifras conservadoras, as quais alguns historiadores multiplicam por dois ou mais.

Também a vida privada de Stálin supera a de Hitler em todos os sentidos. Órfão de pai, sempre teve uma má relação com sua mãe, a ponto de não assistir ao enterro dela; há sérias suspeitas de suicídio tanto de sua segunda mulher como de um dos seus filhos, e, quando ele sofreu o ataque fatal, seus colaboradores íntimos deixaram as horas correrem sem chamar um médico; o próprio Koba havia denunciado “conspirações de médicos”, mas, além disso, sua morte aliviava a todos. 

Sua obsessão paranoica é comparável à do líder nazista, embora menos racional e previsível. Um alemão conservador, ariano de quatro costados e respeitoso com o partido tinha grandes probabilidades de não ser incomodado pelos lacaios do Führer. Com Stálin, nem o bolchevique mais fervoroso estava seguro. Pelo contrário, podia ser detido, torturado, obrigado a confessar delitos imaginários e finalmente executado. Simplesmente porque Koba sentia inveja dele. Stálin condenou Trótski como “esquerdista”, e Zinoviev, Kamenev e Bukharin — que o apoiaram na operação contra Trótski— como “direitistas”; Yagova e Yejov, os chefes da polícia secreta, também caíram... Toda a cúpula bolchevique de 1917-1923, protagonista do Outubro Vermelho, havia sido eliminada em 1939.

E então, nesse mesmo ano, lançou-se à sua grande operação política, prova máxima da sua ausência de princípios morais: aliou-se a Hitler, seu inimigo jurado, para dividirem a Polônia entre si. A responsabilidade pelo início da Segunda Guerra Mundial recai, portanto, sobre ambos, embora depois, quando Hitler atacou seu aliado (que de fato era, já que Stálin nunca rompeu o acordo, embora possivelmente apenas por falta de previsão), o líder soviético entrasse para a história como o caudilho do antifascismo e até fosse candidato ao Prêmio Nobel da Paz. Não vale a pena citar mais dados sobre a estatura moral do personagem. Assim como seu rival nazista, sua personalidade é, definitivamente, o de menos. O importante, o que não deveríamos deixar de nos perguntar nunca, é como pôde aquele sistema colocar a um monstro desse calibre à sua frente.

Toda a cúpula bolchevique de 1917-1923, protagonista do Outubro Vermelho, havia sido eliminada em 1939
A primeira resposta que ocorre é semelhante à do caso alemão: atribuir isso à tradição russa; neste caso, ao czarismo, tirania brutal como poucas (embora seu número de vítimas, comparado ao dos bolcheviques, seja coisa de criança). Ser dominado por um déspota caprichoso, de quem se esperava a solução de todos os males sociais, era o habitual para um russo.

Mas há outra resposta, muito diferente, que acredito ser mais interessante: refiro-me à debilidade política da teoria marxista, à falta de precauções contra os possíveis abusos dos futuros dirigentes da ditadura do proletariado, um trâmite obrigatório no processo de construção do paraíso socialista. Karl Marx, tão penetrante em sua crítica social, mostrou uma surpreendente ingenuidade política ao embarcar sem hesitação no trem jacobino: só importava a tomada do poder pelo proletariado.

Quando isso ocorresse, por que impor limites ao governo do povo trabalhador? Ele não previu algo tão elementar quanto o fato de que os representantes do proletariado, ao disporem do poder absoluto, poderiam usá-lo em seu benefício próprio. Tampouco Lênin, o verdadeiro artífice do sistema, previu isso. Nem Trótski, um de seus colaboradores mais cruéis, que só começou a criticá-lo quando foi deslocado do poder. Stálin limitou-se a aperfeiçoar o modelo montado por Lênin e Trótski.

Marx foi ingênuo ao pensar que só importava a tomada do poder pelo proletariado.  Muito mais pessimistas, e mais lúcidos, os pais do constitucionalismo norte-americano consideraram óbvio que o ser humano tende a se aproveitar do poder quando o tem em suas mãos. E a partir daí montaram mecanismos de partilha de poderes, controles e contrapesos, que impunham os máximos entraves possíveis aos abusos. O sistema está longe de ser perfeito, mas tem funcionado muito melhor do que as ditaduras em nome do povo ou do proletariado.

Alguma moral da história poderíamos encontrar hoje. Os partidos que procedem da tradição comunista e não se desprenderam suficientemente de seu passado stalinista estão pagando por isso. Porque são muito poucos os europeus atuais que desejam viver como os cidadãos da Europa Oriental nos anos 1945-1989. Como a Igreja Católica está pagando, há séculos, por seu passado inquisitorial. Acredita-se vítima de um “laicismo agressivo”, sem compreender que os cidadãos desconfiam, com razão, que o clero, se recuperasse o poder de antigamente, talvez voltasse a erigir piras para imolar quem não comungasse cem por cento do seu ideário. 

E tampouco convém atribuir isso à retorcida personalidade de um Torquemada, e sim a um sistema totalitário de pensamento e de poder. Instituições com tal passado sujo não recuperarão nossa confiança enquanto não abjurarem solenemente esse esquema mental e garantirem, de maneira plausível, que jamais voltaremos a viver aquilo.

Por: José Álvarez Junco é historiador. Seu último livro é ‘Las Historias de España’ (Pons / Crítica, inédito no Brasil).