Acusações e alegações não deviam vir a público antes da certeza jurídica do crime praticado
Dias atrás, sem o merecido destaque, os jornais, rádios e televisões veicularam a notícia de que a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu o arquivamento do inquérito que investigava o senador José Serra. Em casos como esse, quando o próprio Ministério Público desiste de formular a denúncia, pode-se concluir que a acusação era infundada e o acusado sofreu prejuízo irreparável, uma vez que foi enorme a publicidade da acusação e bastante discreta a divulgação da ausência de culpa.
Aquela acusação, partida do malfeitor Joesley Batista, relatava irregularidades que envolveriam a prestação de contas à Justiça Eleitoral durante campanha do senador à Presidência da República. Serve o episódio para demonstrar o risco de lançar na fogueira pessoas acusadas de delitos que dependem de comprovações futuras, as quais podem ser confirmadas ou não. Espera-se uma reflexão mais apurada das autoridades encarregadas das acusações de crimes de colarinho-branco, os quais provocam justificado repúdio da população. A divulgação desses crimes (que ainda serão apurados) acende os refletores e projeta os acusadores, vistos muitas vezes como exemplo. Mas tal conduta merece ponderação, porque não deveriam ser tornadas públicas acusações envolvendo pessoas quando a comprovação dos fatos no inquérito depende da obtenção de provas que nem sempre estão à mão.
A rigor, acusações e alegações não constituem meios de prova e não deveriam, portanto, vir a público antes de haver certeza jurídica do crime praticado pelo acusado. Isso, infelizmente, vem se verificando e causando prejuízos irreparáveis, como o sofrido pelo senador José Serra. O objetivo de investigar e apontar o autor de um delito sempre teve por base, em nosso país, a segurança da ação da Justiça e do próprio acusado. Mas nos últimos tempos tal atividade acabou assumida, de forma misturada, pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, de tal sorte que com frequência vazam informações que parecem de encomenda, ou seja, aparentam ser destinadas a atingir esta ou aquela pessoa. Não se pode perder de vista que a polícia judiciária tem o dever de reunir as provas preliminares e suficientes para apontar, com a necessária segurança, a ocorrência do crime e o seu autor.
Essa atividade é regulamentada por leis penais e pela Constituição federal, motivo suficiente para que seja exercida com equilíbrio e moderação, uma vez que o eventual ajuizamento de ação penal contra alguém provoca um dano, muitas vezes irreparável, à pessoa. Não se deve aceitar essa conduta leviana, talvez estimulada por vaidades ou inconformismos pessoais, que resulte no lançamento de denúncias e mais denúncias, que podem ser comprovadas ou não. A investigação realizada pela polícia judiciária não pode correr o caminho equivocado de basear-se em exame pré-constituído de legalidade e permitir que os fatos ali em apuração se tornem públicos e atinjam a moralidade de uma pessoa, mesmo em se tratando de uma espécie de seres hoje em baixa – os políticos.
Da mesma forma como José Serra foi acusado e praticamente absolvido, imagine-se como ficará o Ministério Público Federal caso a quebra do sigilo bancário do presidente Michel Temer chegue ao mesmo desfecho, ou seja, que a denúncia seja considerada um erro. Não se devem nunca imaginar desfechos para inquéritos em curso, mas é forçoso reconhecer que Michel Temer, após longa carreira na política e como jurista, provavelmente não teria a ingenuidade de deixar em suas contas bancárias evidências de conduta inadequada e até mesmo criminosa.
A denúncia provocou-lhe forte abalo, mas não somente ele sofreu com sua divulgação: também o País acabou atingido, com reflexos negativos na economia. É possível imaginar que nem mesmo provas seguras, irrefutáveis, seriam suficientes para permitir a quebra do sigilo nos autos e o enxovalhamento prévio de um presidente da República. Será que existem essas provas? E se existem, tratando-se de assunto de tanta relevância, por que não foram claramente expostas?
A rigor, os juízes, e também os ministros dos tribunais superiores, confiam nas provas produzidas em juízo porque o inquérito policial, não estando submetido ao contraditório, presta-se muitas vezes a concluir por acusações injustas e temerárias, ao gosto de quem o está presidindo. Já perante o juiz o panorama é outro, porque as provas são produzidas à sua frente, de conformidade com o devido processo legal e a ampla defesa. Essas as razões pelas quais os juízes, fundados no contraditório, não deixam vazar informações tão relevantes como a quebra de sigilo bancário, sobretudo quando o vazamento incompleto não permite à população saber o que realmente acontece, além de causar prejuízo moral a quem é atingido.
O Supremo Tribunal Federal sempre entendeu que a ordem jurídica autoriza a quebra do sigilo bancário em situações excepcionais. Mas, como implica a restrição do direito à privacidade do cidadão, garantida pelo princípio constitucional, é imprescindível demonstrar previamente a necessidade das informações solicitadas, com o estrito cumprimento das condições legais autorizadoras. A Constituição federal acolheu o princípio da vedação da dupla punição pelo mesmo fato – enfim, não se pode impor ao mesmo réu uma segunda condenação. No caso da denúncia feita contra o presidente Michel Temer, a ofensa moral representada por tornar pública a quebra de seu sigilo bancário, assunto que por sua natureza deveria ser reservado aos olhos apenas do juiz, equivale a uma condenação das mais graves, dada a enorme repercussão pública.