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domingo, 28 de fevereiro de 2016

Seita para exportação

Pregando o apocalipse e com regras ultraconservadoras, a Irmandade de Santa Cruz renasce no Amazonas e abre missões na América Latina

No ponto mais alto de dezenas de aldeias às margens do rio Solimões, ergue-se uma cruz vermelha com cerca de 5 metros de altura representando a Missão da Ordem Cruzada, Católica, Apostólica e Evangélica, mais conhecida como Irmandade da Santa Cruz. 

 MISSÃO
Os seguidores da irmandade acreditam que o fim do mundo está próximo e
que só sobreviverão aqueles que estiverem sob a sombra da cruz vermelha

 Seus seguidores se chamam de “irmãos” e, no Brasil, estão presentes apenas no estado do Amazonas. Daqui para frente, porém, mais “hermanos” sul americanos se juntarão a eles, já que a seita fundou neste ano uma missão em Buenos Aires, na Argentina, e se encontra ainda no Peru e na Colômbia. Criada nos anos 1970 com ensinamentos messiânicos e apocalípticos, a ordem cresceu entre índios e ribeirinhos da Amazônia, quase desapareceu após a morte de seu líder e profeta, José Francisco da Cruz, e hoje está vivendo um novo despertar. “Não é permitido nenhum tipo de vício: bebidas alcoólicas, cigarro nem jogo de futebol”, diz Orlandino Santos Pacaio, diretor da irmandade em Tabatinga (AM). “A mulher quando está menstruada não pode entrar na igreja porque neste tempo está impura. Está na Bíblia.”

 CÓDIGO
No culto não é permitido bebida alcoólica, cigarro, nem futebol. E as mulheres têm de ser obedientes
A irmandade acredita que o fim do mundo está próximo e que só sobreviverão aqueles que estiverem sob a sombra da cruz vermelha. O dízimo é obrigatório. Como na maioria das denominações cristãs, 10% da renda vai para as igrejas. Para a doutrina da ordem, porém, quem não pode pagar deve contribuir com os bens pessoais ou com o suor da pele. Missionário católico no Alto Solimões, o frei italiano Paolo Maria Braghini considera que o sistema é radical e, às vezes, exploratório. “Já vi pegarem o motor da canoa de uma pessoa que não tinha dinheiro. Numa região onde a navegação é fundamental, isso retira o sustento da família.”

O fundador da ordem nasceu José Fernandes Nogueira, em Cristina (MG), em 1913. Desde a juventude queria ser padre, sem sucesso. Casou-se, teve filhos e abandonou tudo para peregrinar pelo País com o nome de José Francisco da Cruz. Numa de suas andanças, a polícia o capturou e o levou de volta à família, mas por pouco tempo. Partiu novamente e passou por vários estados até chegar ao Peru. Lá, apaixonou-se por uma índia que mais tarde o abandonaria. Segundo Pedrinho Guareschi, que o conheceu pessoalmente para escrever o livro “A Cruz e o Poder”, essa desilusão amorosa pode estar por trás da aversão do pastor a mulheres. “Não sei se de fato houve qualquer relação mais íntima, mas depois disso ele ficou traumatizado”, afirma. Atravessou a fronteira para o Brasil ao lado dos fiéis peruanos, fixou-se às margens do Solimões em 1972 e lá permaneceu até a morte, dez anos depois.

Boa parte dos seguidores da irmandade são índios da etnia ticuna, a maior do Brasil, com 46 mil pessoas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre os que ali vivem, a influência da seita é ambígua. Se por um lado ela proíbe ritos tradicionais, como o da Moça Nova (cerimônia de entrada das meninas na vida adulta e umas das principais da cultura), por outro as aldeias convertidas quase nunca apresentam casos de alcoolismo, problema comum entre indígenas da região. De qualquer modo, a religião se adaptou à realidade local. “A Santa Cruz mistura catolicismo popular e pentecostalismo”, diz o antropólogo Ari Pedro Oro, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Os ticuna tinham um passado messiânico, esperavam pelo retorno de um herói mítico. O que era dito pelo fundador da seita se encaixou no que os eles já acreditavam.”

Nem tudo permaneceu igual desde a fundação da igreja, há quase 50 anos, até sua internacionalização. O dízimo, por exemplo, não era considerado tão importante antigamente, e muitas vezes sequer era cobrado. Além disso, disputas que sempre existiram entre fiéis brasileiros e peruanos partiram o culto em duas facções, uma considerada mais moderada e outra mais radical. Permaneceu, no entanto, a hierarquia de poder imposta por José da Cruz, dividida entre presidentes, diretores e até delegados, responsáveis pela fiscalização dos hábitos dos fiéis. “A ideia do fundador era mudar o conjunto da sociedade. Por isso, ele não deixou só lideranças religiosas, mas políticas e econômicas também. Isso criou um grande controle social”, afirma Oro.

Fotos: Cacalos Garrastazu 
 
 Fonte: Raul Montenegro - raul.montenegro@istoe.com.br